“Papilla estelar”

Remedios Varo, pintora que nasceu em Espanha, passou por Paris e se fixou no México, em fuga a duas guerras – a Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial, foi mesmo o “remédio” para uma família que havia perdida uma filha.

É necessário, muito, artistas capazes de fazer obras sem cerca. Creio-o com todas as minhas forças. Note-se que o tempo das mulheres nunca poderá ser igual ao dos homens, porque o daquelas é o da Morada: aquele que abriga, onde se matura, onde se forma, onde se dá a gestação. Sim: é o tempo invisível, o que o relógio não mostra. O tempo “aberto”, desdobrado, esse, sim, é o dos segundos. Os dois tempos acompanham-se. Repare-se que “Papilla estelar” tem dois interiores, sendo um deles esburacado, uma elevação e um infinito. Assim: um quarto, uma gaiola, uma torre, um céu. Estes princípios fazem operar feminino e masculino nos seus tempos particulares e característicos. E é neste enquadramento simbólico-metafísico que se dispõe a acção da mulher-protagonista. Não indiquei a máquina porque se trata de um elo e não propriamente de um princípio. 

E o que é uma obra sem cerca? É uma obra sem atestados de acompanhamento e sem guia de marcha. É, em suma: uma obra livre, como livres podem ser as palavras quando, precisamente, não têm cerca. E o que constitui, propriamente, a cerca? Digamos que é quando a legalidade se sobrepõe ao sentimento. Talvez com uma pergunta possa ser mais explícita. É lícito aprisionar a lua? Sim, se for para lhe dar de comer. O quê? Estrelas. Mas a mulher-protagonista está dentro. Sim, claro: porque o tempo das mulheres é o do interior. E esse vai cruzar-se pelo tempo dos homens, que é o do exterior: da capa que cobre o quarto. 

Uma obra sem cerca está para lá do mundo? Mas o céu beija a terra. Pode ser um sonho? Mas apenas as pessoas que estão vivas podem sonhar. É preciso triturar as estrelas para haver lu/ar? Mas durante a noite é que a obra sem cerca pode brilhar. E durante o dia? Mas durante o dia a obra sem cerca dorme. É necessário, muito, artistas capazes de fazer obras sem cerca. Creio-o com todas as minhas forças. E é necessário, claro, que nós delicadamente, pese embora, digamos, sempre: não, desculpe, mas não precisamos de cerca. Apenas assim se dará a proximidade na distância. “Papilla estelar” nasceu em 1958 e é “Remedios” também para 2022.

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