“Auto-retrato como Santa Catarina de Alexandria”

Artemisia Gentileschi pertence a Seiscentos, mas pode auxiliar-nos, agora, a compreender melhor uma questão relacionada com a máxima identidade contemporânea. 

“Auto-retrato como Santa Catarina de Alexandria” foi pintado por Artemisia Gentileschi entre 1615 e 1617, tratando-se de um óleo sobre tela com 71,4 x 69 cm e encontra-se na National Gallery. Não tenhamos dúvidas: a pintura foi, desde o Renascimento e até grosso modo à mudança de paradigma que a arte Moderna vem instalar, um espelho eficaz onde a Humanidade, além de se ver reflectida, se construiu inequivocamente. Referi “grosso modo” para a rasura proporcionada pela arte Moderna porque, como José-Augusto França o demonstra bem, o quadro cegou na generalidade a partir daqui, daí se insistir hoje tanto no tacto, por contraponto à visão. Foi muito habitual o auto-retrato, que aliás se recriou com a arte Moderna, bem como a incorporação da identidade de pessoas queridas aos pintores, vindo figuradas como deusas e deuses, santas e santos, mulheres e homens comuns igualmente. Artemisia Gentileschi, por seu turno, além de se projectar na tela, vem geralmente como outra, o que se atesta também neste seu “Auto-retrato como Santa Catarina de Alexandria”.

Ser como outra, assim manifestado por Artemisia Gentileschi, significa que invoca, neste caso, as características de Santa Catarina de Alexandria – santa e mártir cristã, mas também intelectual, do início do século IV, e que, por uma espécie de osmose colorante, as transmuta nas suas próprias qualidades. Portanto, dá-se uma inspiração. E o que é pintura, pois e muito, para lá desse inspirar do Mundo? E quem somos nós? Hoje procura-se uma identidade descarnada, bem patente no epíteto – “sê tu próprio”. O aviso de Arthur Rimbaud – “je est un autre”, deverá parecer um eco bem estranho na cacofonia narcísica que nos envolve como crosta bem dura. E, no entanto, é esse aviso que informou século após século os pintores, Artemisia Gentileschi, pintora, incluída. Para onde se pretende levar a identidade agora e, mais, de onde provém ela? Ser como outra é indelevelmente belo: Artemisia Gentileschi como Santa Catarina de Alexandria significa, também, além de invocar as características de Santa Catarina de Alexandria, actualizar essa figura da devoção e da civilização, por um lado, e, por outro, investir-se. In-vestir: recebe-se; o que condensa acções muito diferentes das que estão pressupostas no empoderamento actual.

Solidão difere de isolamento.

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