… era uma vez uma galeria de arte – Perspective Gallery, dentro de um palácio – Palacete Severo

Paul Ardenne, o obreiro da exposição “Corps Prodiges”, ou seja, aquele que arrebatou o/as artistas e articulou a experiência que até ao dia 5 de Julho de 2025 podemos presenciar no número 21 da Rua Ricardo Severo, cidade do Porto, disse também, na breve conversa que decorreu entre nós, que a arte, hoje, reclama o acto de voar. Realmente, existe para as obras expostas nos sete pontos do Palacete Severo, um deles exterior e em que essa sensação vem relativamente camuflada, uma impressão de fuga, mesmo que se detecte uma relação formal com os espaços. Aliás, são diversos os contrapontos que podemos indicar, logo à partida entre o exterior e o interior do próprio Palacete Severo: o primeiro um jardim, o segundo uma espécie de gruta; aquele aberto pela luz, este ocluso pela envolvência. A seguir, com efeito, aparecem as obras de arte como aragens, como raios, como buracos, apesar do namoro que tecem com o Palacete.
Ricardo Severo, arquitecto, engenheiro, arqueólogo e escritor luso-brasileiro que dá o nome à rua do Porto, também legou este palacete à trama da cidade e, agora, é da cidade que nele podemos refugiar-nos. Alberga a Perspective Gallery, originalmente criada por Géraldine Banier com o seu próprio nome em Paris, no ano de 2002, e que agora adopta esta nomenclatura no espaço replicado neste Norte de Portugal. “Corps Prodiges”, sendo composta por artistas contemporâneos, por arte contemporânea, por visualidade criada contemporaneamente, ao entrar na gruta do palacete adquire certas qualidades alquímicas, que, apesar de cada obra, como se disse, parecer encetar uma fuga, acabam por criar esse espaço “entre” que Paul Ardenne vincou ser o da arte actualmente.
O historiador de arte de facto acentuou esse lugar da arte como algo da ordem da incerteza – de fronteiras, e da superação – da matéria, oferecendo mais “carne” ao Mundo, tanto quanto formando um plissado, digo, de ilusões. “O que pode um corpo?”, perguntei-lhe, relembrando uma preocupação de Espinosa, filósofo que o próprio Paul Ardenne referenciou enquanto nos guiava pela exposição. Radicou, então, o mecanicismo em René Descartes, de onde se formaria uma linhagem onde veio a inscrever-se La Mettrie, no entanto, para agora observa a progressiva imaterialidade do corpo, sem o espaço que lhe possibilite um posicionamento. Ora, sem este espaço, digo, também se torna problemático estabelecer as relações, de dentro da arte e por fora da existência.

Se o/as artistas estão interessados em voar, nomeadamente sobre a realidade, advogando por essa liberdade que inventa mais e mais, pode a arte vir planar ainda sobre a Terra e dar de beber a quem tem sede? Ou seja, proporcionar uma resposta para a solidão, para a atomização, para o individualismo retinto, problemas que Paul Ardenne afirmou estarem entranhados nas sociedades contemporâneas; o historiador de arte não acredita que o faça, na raiz da criação, porque o desejo de voo é mais intenso. No entanto, como também vincou a dado momento, se do lado do/a artista pode existir esta vontade em altura, já do lado da curadoria coloca-se a dificuldade em escapar aos nichos de população em que se tornaram os públicos; e assim viria o/a artista como um simples balão de ar, que cada grupo-nicho empunharia. Portanto, parece existir aqui uma intriga assinalável, mas igualmente um desafio civilizacional de relevo.
Tia-Calli Borlase, Anne Brenner, Philippe Desloubieres, Qin Han, Mael Nozahic, Agnes Pezeu, Rachel Renault, Wang Yu, cada qual com a sua proposta de fuga, para ver até Julho, dia 5, no aconchegante Palacete Severo por dentro, e com uma aparição por fora. (Paul Ardenne vincou igualmente tratar-se de uma exposição com 7, mulheres, para 1, homem, assinalando que as mulheres, neste momento, sonham mais vincadamente sobre a possibilidade de outros corpos; questão sem dúvida, tão interessante, como urgente para o pensamento. Talvez numa segunda conversa com o historiador de arte possamos desemaranhar o novelo dos “corps prodiges” vinculados à arte contemporânea, quando radicados no feminino.)