Ruta de la Pásion Calatrava, a Páscoa é só o ponto de partida

Quando se fala em Páscoa, vêm à mente procissões pesarosas. Mas será apenas esta a identidade do Campo de Calatrava? Ou haverá muito mais para descobrir?

Por todo o mundo, a Páscoa é celebrada de formas totalmente diferentes e variadas, dependendo do estado de espírito e as influências de cada terra, região, país.

Tendo em conta a sua experiência de vida, haverá sempre os que assistem a estas procissões religiosamente, haverá quem as tenha vivido uma ou outra vez e os que nunca tinham vivenciado tal acontecimento. Devo dizer que me incluía neste último espectro, pelo menos até ter tido a oportunidade de conhecer uma interpretação, por assim dizer, do que é esta época festiva no Campo de Calatrava, localizado na Província de Ciudad Real, na Região Autónoma espanhola de Castilla-La Mancha. A Ruta de la Pásion Calatrava marca o encontro entre as festividades religiosas, a gastronomia típica e a História da Ordem de Calatrava, responsável pela administração e defesa desta região desde o Século XII.

Em 1158 era fundada a Ordem Militar de Calatrava, pelo monge cisterciense Raimundo de Fitero, como nos contou o guia que nos acompanhou ao longo da visita ao Castelo de Calatrava La Nueva. Construído no século XIII, com o intuito de defender o território de Castela dos ataques dos mouros, a verdade é que nunca as suas muralhas foram postas à prova. As três linhas defensivas (muralhas), serviam também para fazer a distinção entre os três estratos sociais: os artesãos ficavam mais abaixo, no meio os cavaleiros e acima os monges. Fora das muralhas, encontravam-se os camponeses, responsáveis pelo cultivo dos cereais e leguminosas, a base da alimentação, assim como os pastores, acompanhados pelos seus rebanhos de gado. A produção do queijo Manchego, muito importante nesta região, ficava a cargo destes últimos, tal como a carne, importantes pilares da alimentação, tanto no passado, como no presente. Um desses exemplos são as chuletillas de cordero lechal ou “costeletas de cordeiro de leite”, em português, muito tenras por dentro e crocantes por fora. 

Devo dizer que fiquei com a ideia de que as receitas do Campo de Calatrava são muito simples, além de que a matéria-prima, ou seja, o mais importante, tem muita qualidade, o que resulta em pratos espetaculares, como o puchero de la abuela: potaje de vigilia, o que significa algo como “cozido da avó feito para os dias de abstinência de carne [da Quaresma]”, denotando-se o tempero divino que está presente nos pratos tradicionais. A base desta receita são o grão de bico, o ovo, os legumes, o bacalhau e, como não podia faltar numa região marcada pelos olivais, o azeite. 

A Flor de Calatrava, sobremesa estaladiça típica do Campo com o mesmo nome, tem a forma da Cruz da Ordem de Calatrava. A sua confeção envolve fritura, pelo que transportá-la por longas distâncias é um processo um tanto arriscado, sendo muito mais aprazível e seguro degustá-la numa aldeia do Campo de Calatrava, pois encontrar um local onde esta seja comercializada é tão fácil como encontrar uma pessoa animada nas suas ruas durante as celebrações da Páscoa. Esta é daquelas sobremesas intemporais com a qual todos se deslumbram, seja pelo lado visual ou pelo degustativo, sendo consumida todo o ano, não havendo restrições durante a Semana Santa, deixando qualquer pessoa feliz.

Apesar de tudo, quando se fala em Páscoa, vêm logo à mente procissões pesarosas (pelo menos era esse o estereótipo que estava presente na minha cabeça), começando pelo vestuário, passando pela música e acabando na razão pela qual se celebra, além de toda a história dos últimos dias da vida de Jesus. Ou uma interpretação do que foram.

Era Quinta-Feira Santa de manhã e chegámos à Aldea del Rey. Os preparativos para o que se seguiria estavam em marcha, não só da parte dos que representariam, como também da parte do público. A representação teria lugar ao ar livre, pelas ruas da aldeia. Tudo começou com o diálogo entre Judas e o capitão dos Armaos, uma interpretação dos soldados romanos e judeus responsáveis pela captura e julgamento de Jesus. O Vendimiento de Cristo é então selado com a entrega de uma bolsa recheada de dinheiro a Judas, momento durante o qual a sinfonia que saía dos variados instrumentos cessou. Segue-se o Prendimiento de Cristo, passada cerca de meia hora, por parte dos Armaos. A representação de Jesus fica a cargo de uma estátua, a qual repousa no centro do Monte das Oliveiras, uma demonstração do respeito que os “meros mortais” têm por esta figura. 

À tarde, já em Bolaños de Calatrava, inicia-se uma outra interpretação daquilo que é o Vendimiento e o Prendimiento de Cristo, com discursos de párocos a acompanhar. Toda uma multidão se juntava para ouvir a música e as passadas sincronizadas das Hermandades (Irmandades) locais, como a dos Armaos ou a de Jesús Nazareno.

A única celebração profana realizada em Castilla-La Mancha durante a Quaresma é um jogo do tipo dobro ou nada conhecido por “Cara ou Cruz”. Na Sexta-feira Santa, estão espalhados cerca de 20 círculos por Calzada de Calatrava. Duas moedas de cobre do reinado de Alfonso XII são lançadas ao ar e o resultado da aposta depende da face que fica voltada para cima. Estas apostas remontam às mesmas realizadas pelos soldados romanos sobre as vestes de Cristo, após a sua crucificação.

No sábado Santo, à tarde, chega à Plaza Mayor, em Almagro aquele que é o momento mais esperado pelos visitantes da Ruta de la Pássion de Calatrava. O caracol, protagonizado pelos Armaos, simboliza a disciplina e a coordenação típicas do exército romano. Ao longo desta marcha, é desenhada uma espiral humana pelos “soldados romanos”, aludindo à captura de Cristo. A sempre presente música marcava o ritmo da formação.

À noite, pelas ruas de Almagro, chega a Procesión de la Soledad, marcada por um silêncio interrompido por pouco mais que os cochichos dos homens e mulheres de todas as idades que ali se juntam para assistir à procissão de mulheres vestidas de negro, uma homenagem à tristeza de Nossa Senhora causada pela morte do filho. A emoção e a dor enchem o espaço, aliando-se à enigmática ausência de luz.

Com a noite acabou esta magnífica experiência em Calatrava. Admitir que de início estava um tanto cético é dizer pouco, mas esta experiência no Campo de Calatrava foi mais uma prova de que primeiro devemos conhecer e apenas depois fazer juízos de valor (neste caso acerca das celebrações da Páscoa).

Devo dizer que um aspeto muito positivo no Campo de Calatrava, ou mesmo a sua identidade, é o facto de podermos passar a manhã a assistir às procissões religiosas e àquela que é a interpretação dos últimos dias da vida de Jesus e a tarde a aprender a história desta região, por exemplo, no Corral de Comedias ou no Museu Nacional de Teatro de Almagro, onde ocorrerá a 48ª edição do Festival Internacional de Teatro Clássico de Almagro , entre os dias 3 e 27 de julho de 2025.

Este é um aprazível convite para visitar o Campo de Calatrava, pois aqui não só o teatro e a história têm o seu espaço. Em 1949, o célebre cineasta Pedro Almodóvar nasceu na aldeia de Calzada de Calatrava, onde é possível visitar o Espacio Almodóvar, com os seus cartazes e, por incrível que pareça, uma sala de cinema com capacidade para albergar 400 pessoas. E reforço esta última singularidade, uma vez que não é comum a sua existência em lugares um tanto ou quanto afastados dos grandes centros urbanos. Além disso, as ante-estreias de alguns filmes do realizador tiveram lugar neste espaço, contando com a presença de críticos internacionais, sendo também abertas ao público local. Assim se denota o carinho que o cineasta tem pela sua aldeia natal.
Compreendo-o. 

Como poderia alguém não ficar apaixonado por toda a animação e alegria que as aldeias do Campo de Calatrava emanavam? Aquelas pequenas ruas. “Pequenas” em relação ao número de pessoas que albergavam. “Grandes”, tendo em conta as histórias que contam. Nomeadamente, a História da Ordem de Calatrava, do Museu Nacional de Teatro ou a vida de Pedro Almodóvar. Afinal, durante quatro dias não só fomos e estivemos no Campo de Calatrava, como trouxemos de presente parte das tradições, da História e do humor que por lá vivemos, na forma de memórias e conhecimento.

+ Ruta de la Pasión de Calatrava
© Fotografia: João Pedro Rato

A equipa da Mutante viajou a convite da Ruta de la Pasión Calatrava.

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