Um espaço inusitado para um dos mais originais e maiores pintores da nossa história: “A Divina Comédia de Salvador Dalí”, uma exposição no âmbito do projeto “A Arte Chegou ao Colombo”, em Lisboa.
No ano em que se assinalam os 750 anos do nascimento de Dante Alighieri – escritor do século XIV, mundialmente conhecido pela criação do poema didático alegórico, e obrigatório, “A Divina Comédia” – o Centro Colombo traz à Praça Central, de 17 de junho a 20 de setembro, uma exposição de gravuras originais do genial surrealista Salvador Dalí que ilustram a viagem da vida humana no Além que é retratada nesta obra, marcando assim a 5.ª edição deste projeto “A Arte Chegou ao Colombo”.
Com o apoio da Embaixada de Espanha, “A Divina Comédia de Salvador Dalí” reúne, pela primeira vez em Lisboa, uma coleção completa de 100 gravuras originais do artista espanhol, inspiradas na obra literária de Dante Alighieri, que representam uma viagem cenográfica dos três reinos pelos quais a vida humana passa até atingir a tão almejada perfeição – o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Estas gravuras, produzidas através da técnica de xilogravura (gravura em madeira), datam de 1960 e apresentam uma dimensão de 33cm x 26cm.
Dalí interpreta “A Divina Comédia” como uma espécie de viagem tripartida que reflete momentos distintos da sua carreira como pintor: é uma viagem de autoconhecimento, uma análise do artista às profundezas do seu ser, sendo cada gravura o reflexo da sua técnica artística, da sua arte e da sua vida. Na interpretação artística que faz, Salvador Dalí ocupa o papel de Virgílio (ou não personificasse ele a razão, a fé está entregue a Beatriz e o homem… é o narrador, Dante), imerso nos estratos que Dante Alighieri escalou, e as suas gravuras ilustram a profundidade transcendental da obra “A Divina Comédia”.
Seguindo a estrutura do livro, as ilustrações foram organizadas em três espaços, que remetem para a viagem de Dante Alighieri: foi feita uma impressão para cada canto e, ainda, uma para a capa, dando origem ao total de 100 gravuras, produzidas através da técnica de xilogravura. Esta técnica permite fazer linhas finas e várias impressões, a partir da mesma prancha de madeira e, para produzir gravuras com várias cores, têm de ser feitas várias pranchas, uma para cada cor. Para a coleção A Divina Comédia foram utilizadas cerca de 3.500 pranchas gravadas, que se refletem num resultado surpreendente, tanto do ponto de vista técnico como artístico. A Exposição conta com a Curadoria da State of the Art e o projeto de arquitetura é da autoria do Ateliê português LikeArchitects.
Para inovar o conceito tradicional que sustenta as tradicionais mostras de Arte, o pavilhão expositivo que albergará a Exposição “A Divina Comédia de Salvador Dalí” contempla uma instalação interativa. Ao longo das 9 salas do pavilhão (três salas que representam o Inferno, três que representam o Purgatório e três que representam o Paraíso), existirão três monitores equipados com sensores que detetam o movimento dos visitantes, nos quais atores portugueses devidamente caracterizados – Ana Padrão (Beatriz-Gala), Fernando Ferrão (Dante Alighieri) e Afonso Melo (Salvador Dalí) – irão aparecer e explicar a obra a quem a visita. Esta explicação só se iniciará à medida que o visitante se aproxima do ecrã, criando assim um efeito surpresa e de interação. Curiosa visita, com certeza.
“A mostra é belíssima, a coleção de 100 gravuras tem um poder encantatório místico, Salvador Dalí é um artista extraordinário com enorme atratividade e não há, em Portugal, muitas obras dele em permanencia. É uma excelente oportunidade que o público não vai deixar de acompanhar”, refere a Embaixadora da Exposição, Maria Gabriela Canavilhas, acrescentando que “é uma excelente ideia que irá permitir que milhares de pessoas possam usufruir do prazer e da experiencia transcendente de conhecer esta obra artística de Salvador Dalí e, com ela, de perceber melhor os meandros esta obra-prima de Dante Alighieri”.
Dante Alighieri chamou ao seu trabalho “Commedia”, porque o mesmo termina com um final feliz. O título “Divina Comédia” foi criado mais tarde, depois da morte do autor, em Ravena. A sua obra permaneceu (e permanece) ao longo de vários séculos como fonte de inspiração para pintores, escritores e músicos. Quando Salvador Dalí recebeu do governo italiano a encomenda para ilustrar A Divina Comédia, no âmbito da comemoração dos 700 anos do nascimento do grande poeta Dante Alighieri, começou de imediato a trabalhar nesta obra artística ímpar. Na altura, a encomenda causou polémica e os críticos questionaram porque é que tinha sido um artista espanhol a ser escolhido para ilustrar o celebre livro do autor italiano, Dante Alighieri, e o contrato acabaria por ser anulado. Contudo, o artista naturalmente cativado pela figura de Dante Alighieri e pela importância da obra no contexto da cultura ocidental, continuou a trabalhar na ilustração da obra. Sentiu-se, também, desafiado pela possibilidade de poder ilustrar a obra, assim como tantos outros artistas anteriores o fizeram, nomeadamente, S. Botticelli, William Blake, Arnold Böcklin e G. Doré. Este trabalho constituiu uma jornada através das bem conhecidas formas de expressão do mestre espanhol. O símbolo, a alusão, o exotismo, a magia e a alegoria habitam uma obra independente, que vai para além daquilo que o nosso imaginário concebe da obra literária.
Em Paris, Salvador Dalí trabalhou, entre 1950 e 1959, com os mestres gravadores Raymond Jacques e Jean Taricco na realização da série composta por 100 gravuras a cores, e cuja publicação ocorreu, em 1960, pela editora parisiense Les Heures Claires. Precisamente neste período, Salvador Dalí refletia ativamente sobre a praxis artística e a sua relação com a literatura e as teorias filosóficas e históricas.
O Inferno
Quando Dante Alighieri chega à meia-idade vê-se perdido numa selva escura, uma vez que a sua vida deixou de seguir o caminho certo. Ao tentar escapar da selva, encontra uma montanha que pode ser a sua salvação, mas é logo impedido de a subir por três feras: um leopardo, um leão e uma loba. Prestes a desistir e a voltar para trás, o autor é surpreendido pelo espírito de Virgílio – poeta romano que admira – disposto a guiá-lo por outro caminho. Virgílio propõe a Dante Alighieri fazer uma viagem pelo centro da terra. Iniciando-a às portas do Inferno, atravessariam o mundo subterrâneo até chegar ao sopé do monte do purgatório; depois, Virgílio guiaria o autor até as portas do Paraíso. Primeiro acovarda-se com tal proposta e tenta desistir da jornada, mas Virgílio impede Dante Alighieri de o fazer e revela ter sido enviado por Beatriz, a sua grande amada, para o ajudar. Então, o autor recupera a sua coragem e inicia a viagem. Virgílio guia-o e protege-o através dos nove círculos do Inferno, mostrando-lhe onde são expurgados os diferentes pecados, o sofrimento dos condenados, os rios infernais, as cidades, os monstros e demónios, até chegar ao centro da terra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer, conseguem escapar do Inferno por um caminho subterrâneo que leva ao outro lado da terra e, assim, conseguem voltar a ver o céu e as estrelas.
Nas gravuras de Salvador Dalí, este início da viagem, no Inferno, possui aquelas referências oníricas que são mais tópicas do universo surrealista do artista. Na interpretação do pintor, a passagem pelo Inferno é aquela que se mostra mais intensa, é o momento onde se vivencia uma experiência mais sombria e penosa e as próprias angústias do ser humano. Neste primeiro momento da sua viagem, Salvador Dalí exprime uma interpretação mais individual, entrando de forma mais incisiva e ousada na narrativa. Indo por partes:
O Purgatório
Saindo do Inferno, Dante Alighieri e Virgílio veem-se diante de uma altíssima montanha: o Purgatório. A montanha é tão alta que ultrapassa a atmosfera e invade as fronteiras do fogo que se elevam para o céu. No sopé da montanha, encontram aqueles que se arrependeram tardiamente dos seus pecados e aguardam a oportunidade de entrar no Purgatório. Depois de passarem pelos dois níveis do sopé da montanha, os poetas atravessam um portão e iniciam uma nova viagem, desta vez subindo ainda mais. Passam por sete terraços, cada um mais alto que o anterior, onde são expurgados, cada um, dos sete pecados mortais. No último círculo do Purgatório, Dante Alighieri despede-se de Virgílio e segue acompanhado por um anjo que o faz atravessar um muro de fogo que separa o Purgatório do Paraíso terreno. Finalmente, às margens do rio Lete, Dante Alighieri encontra Beatriz, a sua amada. Purifica-se nas águas do rio para prosseguir viagem e subir às estrelas.
Neste segundo momento, Salvador Dalí explora o mundo do subconsciente, demonstrando que pensou a dimensão intermédia do Purgatório como um espaço de transição, onde coloca em evidência as dúvidas do Homem. Aqui, são enfatizados vários elementos iconográficos e simbólicos da obra de Dalí como muletas, cabeças ou corpos moles. Neste percurso, Salvador Dalí vai deixando para trás a iluminação obscura das gravuras referentes ao Inferno e começa, gradualmente, a construir uma gradação na iluminação que irá vigorar, mais tarde, no Paraíso.
O Paraíso
Ainda no paraíso terreno (paraíso material), Beatriz, que olha fixamente para o sol, acompanha Dante Alighieri até que começam a elevar-se. Guiado por Beatriz, o autor passa pelos vários céus do Paraíso e encontra personagens como São Tomás de Aquino e o imperador Justiniano. Chegando às estrelas do céu, é questionado pelos santos sobre as suas posições filosóficas e religiosas e, depois do interrogatório, recebe permissão para prosseguir. No céu cristalino – Paraíso Espiritual onde não há matéria – Dante Alighieri adquire uma nova capacidade visual que lhe possibilita ter a visão para compreender o mundo espiritual. Nesse momento, encontra nove angélicos círculos concêntricos que giram à volta de Deus. Separa-se, então, de Beatriz e tem a oportunidade de sentir o amor divino que emana diretamente de Deus, “o amor que move o Sol e as outras estrelas”.
Na série de gravuras de Salvador Dalí, o último momento da viagem de Dante Alighieri – o Paraíso – é possível identificar traços da fase mística do artista, com imagens mais calmas, serenas e equilibradas. É nas 33 gravuras dedicadas ao Paraíso que a paixão de Salvador Dalí por Gala, eterna musa amada e modelo inspirador da sua expressão artística, surge mais intensamente, acabando Beatriz – personagem da obra literária pela qual Dante Alighieri nutre um amor platónico – por receber os contornos faciais e de silhueta, claramente reconhecíveis de Gala, a mulher e Salvador Dalí (presença inconfundível e incontornável na sua obra).
A Exposição estará patente até ao dia 20 de setembro, na Praça Central do Centro Colombo, todos os dias, das 10h00 às 24h00. A entrada é gratuita. Podem ser efetuadas Visitas Guiadas à Exposição à 3.ª e 5.ªfeira, às 11h30m, com marcação prévia que deve ser feita no Balcão de Informações do Centro ou através do contacto telefónico 217113600. Aos sábados e domingos, as Visitas Guiadas podem ser realizadas entre as 11h30m e as 15h30m, sem marcação prévia. A lotação máxima por cada Visita Guiada é de 15 pessoas.
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