À conversa, “Um dia destes”, com Anaquim

“Um dia destes”, estivemos numa longa e amena conversa, com José Rebola. Viajámos pelo universo Anaquim, esmiuçámos a sua história, entendemos as suas influências, decifrámos a sua ironia e elevámos a liberdade. Partimos à descoberta da banda e do novo álbum de originais – “Um dia destes” – e este é o resultado.

“As vidas dos outros” (2010). “Desnecessariamente complicado” (2012). “Um dia destes” (2016). Em todos os títulos, a ironia dos quotidianos. É já uma assinatura vossa, o estilo?
Sim. Vamos muito por aí. Há um filme, muito tonto, que vi várias vezes na minha infância – “Robin Hood: Heróis em Collants”; o Sheriff of Rottingham chega para dar as noticias que Robin Hood está de volta ao Reino, mas o Rei, não querendo ouvir más notícias, pede: “Se me conseguisses dar as más notícias de uma maneira agradável era muito melhor”. Creio que é isso que fazemos. Nos primeiros trabalhos, especialmente, focávamos temas mais políticos e sociais, e não queríamos que, quem ouvisse, sentisse que era algo demasiado denso, mostrando que esses temas podem ser abordados com certa ligeireza. Assim, a ironia e o humor são duas ferramentas que usamos e abusamos. São o melhor veículo para fazer essa dicotomia: dar as más notícias de uma maneira boa.

Agarrando na ironia, Victor Hugo diz: “É pela ironia que começa a liberdade”. É a música a vossa forma, irónica num sentido abrangente da palavra, de serem livres?
É uma das formas, sim. Se bem que, olhando para o nosso passado, diria que precisar de usar figuras de estilo, para dizer aquilo que se quer, não puder dizer de uma maneira completamente franca, não é liberdade. Hoje, é bom puder dizer o que se quer de todas as maneiras e o formato canção pode ser uma forma de intervenção, mas não tem de ser um chavão e sim adornado. Usamos a ironia para nos enriquecer e temos essa liberdade de escolha – muito graças à língua portuguesa, onde há uma liberdade tão grande de palavras, de ideias, de contradições no que é ser português. A ironia e o humor são uns dos passos que mais nos caracterizam, enquanto país – sabemos rir de nós próprios. A nossa lírica passa por aí, a nossa forma de estar em palco. E não é uma coisa que vamos buscar a laboratório para meter nas músicas, somos mesmo assim.

Ao ver a vossa cartilha e ouvir a vossa música aponto: Chanson Française, Country, Bluegrass e nomes como Zeca Afonso, Sérgio Godinho ou Fausto. Por partes, para tentar desvendar influências.

Country e Bluegrass. Posso dizer que se espelha, e.g., em “De vez em quando” e em “Cabeça de vento” pelo sobressair de um banjo e pelo ritmo sincopado? Ou há mais, ou outro?
Bebemos muito do Bluegrass e do Country, embora não diria que “Cabeça de Vento” seja bem Country. É mais Jazz Manouche, à criação do Django Reinhardt, com aquele pulsar, o swing. Hoje em dia, quase não se pode dizer branco e preto sem se falar em racismo. Mas somos branquelas e os brancos gostam de ritmos marcados. É ver as nossas festas populares europeias que são muito à base de ritmos, e.g., quaternários e um Bluegrass está aí. Depois, há o equilíbrio, se a música é mais rebuscada a letra torna-se mais simples e vice-versa.

Chanson française. Estará num instrumental, e.g., em “Rádio na Varanda”? O que bebem dela?
Dois pontos na canção francesa. Uma, é a música em si, gosto muito do Django Reinhardt e ele fez uma interpretação ao jazz ímpar. Não tinham sopros em França, era só com cordas e aquilo era o Jazz para ele. Só que ele tinha um passado, um reportório francês e juntava-lhe muito valsas, a influência vem daí, também. Depois, creio que é a forma de contar as histórias do formato canção, algo que também temos. A canção francesa, como em Jacques Brel e outros, tem uma forma muito simples de transmitir a mensagem, de contar histórias e é isso que gosto de tentar recriar, à nossa maneira.

Zeca e Sérgio Godinho, a título de exemplo. Além da mensagem, que mais espelha a influência? Posso apontar a lírica em “Caros Amigos”?
Gostava de responder de forma mais precisa, mas a questão da influência racional funde-se muito com a visceral. Cresci a ouvir Zeca e Sérgio, o meu pai tocava para mim e para a minha irmã, punha cassetes deles e tinha um livro com o cancioneiro do Zeca. Portanto, são sons que me moldam desde há muito e acabo por tentar perceber esse legado. Ao ouvir com alguma distância, apercebo-me de coisas que não entendia quando mais novo. Gosto da arte de escrita deles, dos temas que vão buscar – fazer de um tema trivial algo onde conseguem por uma mensagem. Lá está, voltamos à ironia do início, não usas o chavão. E, claro, o não terem tido medo de abordar qualquer assunto, por mais delicado que ele fosse…

Permanecendo na música atrás.

Coimbra, vossa cidade, é várias vezes criticada por ser parada, mas muito há e é berço de tanta música. Qual é a vossa relação com a cidade?
Aqui há conflito de interesses (risos), somos, os cinco, de Coimbra, nascidos e criados. Nunca tive a sorte, e talvez um pouco a vontade, de morar noutro lado. Não tenho o distanciamento para fazer a comparação com outras cidades, não conhecendo bem a realidade delas. Em relação a Coimbra, há muito a acontecer e muitos microcosmos. As coisas encerram-se, um pouco, nelas mesmas e há uma série de mini iniciativas, e até guerras entre facções que, em vez de colaborarem, competem. Não há falta de meios, há falta de integração. Por exemplo, os a Jigsaw deram um concerto, em tempos, no Salão Brazil, em que convidaram uma série de músicos, de uma série de bandas, de uma série de cenários diferentes e foi muito bom ver isso, a conversa de uns com os outros. É isso. Há coisas a acontecer na cidade que não atingem uma escala maior por falta de diálogo, ou de um plano mais global que envolvesse não só a cidade, mas toda a região centro.
É uma boa cidade para se ser músico?
Sim. Se é uma boa cidade para tocar, é outra história. Há poucos espaços de média dimensão e há pouca cultura de ir a concertos de coisas que não se conhece, e é olhar para trás e ver as bandas que já saíram daqui, desde os incontornáveis Tédio Boys, aos Belle Chase Hotel, Parkinsons ou Wraygunn e hoje, tens ainda mais. Dizem que é a Cidade do Rock, é verdade, mas é mais do que isso. Temos um legado musical imenso.

No que respeita ao país, vale a pena ficar? Ainda há a mão que nos permite fazer a estrada para ser feliz, mesmo que seja tudo arrancado a ferros…
Sim, quando confrontado com a alternativa que não se pode por, de irmos todos embora, de deixar de existir produção, primeiro cultural e depois de tudo, essa alternativa não é viável. Seria um baixar de braços e dizer “falhámos, todos”. Emigrarmos e deixar o pais ao abandono não me parece, de todo, uma solução. A alternativa é ficar e perceber que pode não ser a solução óptima, no momento, que pode custar, mas é uma solução de reconstrução. Há muitas formas de cuidar de uma casa que não está habitada: uma é ir lá, fazer a manutenção, tentar arranjar novos inquilinos e outra é deixa-la, simplesmente, ao abandono. Não é a solução fácil, mas se não acreditarmos que é a solução possível, então o cenário é muito mais aterrador.

Este álbum, vai passar Vilar Formoso e rumar a destinos inesperados como anteriormente?
Sim. Nós adorámos esses destinos, foi muito curioso ver que Anaquim funciona em contextos que, à partida, tinham tudo para correr mal. As nossas experiências internacionais foram: Zimbabué, Namíbia, África do Sul e Hungria. Na África do Sul tocámos, essencialmente, para a comunidade portuguesa. Na Namíbia tivemos dois momentos. Primeiro, um Teatro em Windhoek onde de nos foi dito que não havia o hábito de ir a concertos, que estivéssemos preparados para tudo. Sala quase cheia, tocámos o primeiro tema e fomos recebidos com uma salva de palmas brutal, foi um concerto marcante. Depois, em Walvis Bay, num liceu, porque tinham alunos a aprender português e tocámos para algumas pessoas que era o primeiro concerto que viam na vida, isso marcou-nos. No Zimbabué foi no Festival Hifa, com casa cheia, tocámos à tarde para um público dos 7 ao 77 e tínhamos os cachopitos a dançar à frente do palco e os mais velhos a curtir nas bancadas. Percebemos que cantar em português não era um papão, explicávamos as músicas em inglês. Na Hungria foi mais complicado. Não falam muito inglês, sim alemão e russo. Ainda assim, acabou por se conseguir estabelecer uma plataforma de comunicação. Foi um dialogo mais musical. Ficámos contentes, percebemos que podemos funcionar lá fora e gostávamos de sair com este álbum.

No geral, na sociedade onde nos mexemos, há os bichos que tão sarcasticamente cantam em “Anda por aí um bicho”. Na música, anda por aí algum bicho ruim?
O que falta em Portugal, creio, é um circuito de salas e de espaços que consiga corresponder a esse boom de música portuguesa. Há bandas que perdem na parte da longevidade, dão quatro a cinco concertos e esgotam-se. A questão é, também, o tamanho do país. Fazes um circuito de 20 salas grandes e já é muito bom, e esgotaste o país. Há falta de espaços de pequena média dimensão e falta espaço nos media.
Falta tempo, para ouvir?
Hoje, há o termo que é “picar o álbum”. Ouves 10 segundos de cada música, fazes um mini filtro, isto é para ouvir com mais atenção, isto não é. Há tempo para ouvir tudo, a questão é se queres ouvir, e há dois tipos de ouvintes, os que ouvem os mesmo temas 100 vezes e aqueles que querem descobrir novas bandas. Devemos habituar-nos a ter mais diversidade e escolher. Tempo há, não há é disciplina.

Mantendo a regra, os convidados.

É impossível não apontar e dizer “É o Palma!” Esta música foi feita a pensar nele? Só pode…
Não. (risos). Penso que esta foi a única música, das quatro colaborações que fizemos – primeiro álbum foi Ana Bacalhau e Viviane com músicas feitas para a ocasião – que esteve gravada só connosco. Porém, já tínhamos achado que a música parecia Jorge Palma. Aliás, nós não gostamos de nos esquivar. Esta música, numa gravação dos ensaios, começa com o Luís a dizer “Vamos tocar ‘wannabe Jorge Palma, take 1’”. Quando surgiu a possibilidade de trabalharmos com o Jorge e o levarmos a estúdio, ele começa a cantar e pensámos “isto encaixa aqui tão bem”. Provavelmente a música foi feita para o Jorge Palma só nós é que ainda não sabíamos. (Risos).

E “Há sempre qualquer coisa” que nos faz esperar a voz da Luísa Sobral, naquele arranque. Porquê a doce Luísa no embalo?
Ela tem a temperatura certa na voz… Primeiro, tinha de ser uma mulher para esta música. Fazia sentido, pelo facto de faltar alguma coisa às nossas vidas e de, às vezes, deixarmos que isso transpareça para impedir que uma relação venha a acontecer. Depois, porque nós já nos conhecíamos, já tínhamos partilhado alguns palcos e até alguns eventos fora de palco, e queríamos mesmo trabalhar com ela. A Luísa tem trato muito fácil, gosta de criar e é muito segura de si. Sempre nos demos bem e sabíamos que ela gosta(va) de fazer colaborações, fazia todo o sentido. Convidamo-la, aceitou logo. O arranjo das vozes foi ela que fez e surpreendeu-me com a escolha das linhas vocais, em que as vozes cruzam e descruzam. Nesta música, ela flutua, é um manto de seda ou veludo por cima da intempérie… Ficou na muche, a voz dela, a calma dela, pela mensagem, pelo tipo de personagem que está um pouco angustiada, mas sem nervos, numa resignação. Eu, sozinho, não conseguiria aquela calma.

Cantam o hoje e histórias de encantar. A Leia, que usam como exemplo de amor perfeito, estarei errada em dizer que não és, Zé, imune ao seu charme?
(Risos) A Leia tem qualquer coisa, mas não é, de todo, a mulher perfeita do meu imaginário. Como a banda se chama Anaquim pensei que a Leia tinha que entrar, achei piada. O universo Star Wars tinha de vir para aqui.

Não resisto em perguntar-te pela família restante, o Anakin Skywalker continua a ser um herói? Que tal o último filme da saga?
Não diria um herói. Foi um nick que usei no Messenger. O que há no Anakin é ele ser parte de uma dualidade – tens um Anakin e depois tens Darth Vader. Usava esse nick para realçar que temos essa dualidade dentro de nós, não há seres perfeitos. É possível ter essa dualidade e fazer por ser mais Anakin. Só recentemente me tornei um ávido consumidor do universo Star Wars e sim, fui ver este último duas vezes e fiquei com mais curiosidade para o VIII e o IX. Só podemos avaliar esta trilogia no fim, mas acho que fez sentido. Teria que surpreender muito as pessoas para a continuação não ser esta. Gostei.

Voltando ao amor. Por que é ele tão inevitável, quase sempre complicado, cheio de incertezas, de noites em branco e de vassoura nos braços, na música?
Nós somos contadores de histórias, basicamente, sob o formato de canção, e não é por acaso que as maiores histórias da humanidade são histórias de amor, ou onde o amor desempenha um papel importante. O amor tem um papel primordial nas nossas vidas. Nos primeiros trabalhos, ele esteve sempre presente, mas não tinha um papel de destaque. Este é um álbum mais sereno, fala de encontros e desencontros, ninguém conta uma história de amor à pressa. Tem a solenidade que o tema pede. O próprio nome do álbum vem daí. Nos dias de hoje tudo parece ter hora marcada e estes (des)encontros podem acontecer em qualquer momento.

Fazer um novo álbum é também o medo de ligarem e não atender ninguém do outro lado?
Quando se cria não há esse medo. O processo criativo é uma coisa que flui e estamos entusiasmados. Agora, a partir do momento em que o processo criativo está feito, até o álbum estar nas lojas, é um processo que no Portugal de hoje não é trivial, de todo. Isto foi um álbum de parto difícil e tivemos alguns labirintos para resolver, mas, a dada altura, alguém nos atendeu o telefone.

Também precisam que vos mintam para conseguirem sair da cama e vos lembrarem que o mundo não é tão mau como vos pintam?
Enquanto músicos, há alturas em que precisas de uma opinião franca, de outro modo não te apercebes de coisas que estás a fazer menos bem. Depois, há momentos em que sabe bem ouvir aquilo que gostavas de ouvir. O reforço positivo é importantíssimo e, por vezes, todos precisamos de uma mentirinha. São precisos dois mundos e nunca cair só na loucura dos elogios.

Na vossa imagem há um clara evolução, certo?
Há, sim. Percebemos isso, que hoje em dia uma banda, não é só música. Enquanto banda és um todo e no palco és também imagem, luz, roupa… Tivemos, para a imagem do álbum, toda uma equipa de styling com a Sandra Pintéus e a Filipa Ramires, com ajuda preciosa do David Gaspar, da Mau Feitio. E, claro, cabelo e imagem, estamos na mão do Carlos Gago, que tem sido impecável.
Estamos num hoje que não é só a musica que fazes, mas o que fazes para ela chegar as pessoas. Esta é uma das maneiras e tens de ser cada vez mais incisiva e mais original na forma de te promoveres.

Se eu vos perguntasse com quem, “Um dia destes”, gostavam de partilhar um palco ou até criar um projecto conjunto, que resposta teria?
(Risos). Isso é uma pergunta com rasteira! Já temos alguma versatilidade no que fazemos, no que ouvimos ainda mais – os cinco temos gostos muito diferentes musicalmente -, pessoalmente, do panorama português gostava de fazer qualquer coisa com o Sérgio Godinho, com o Manuel Cruz… Internacional, talvez o Viniciu Capossela ou Sanseverino, mas isto já numa perspectiva egoísta, de querer conhecer os heróis.

Agora, marcha um chá de cidreira, uma raspadinha, estendemos o défice (está sol) e gritamos “linha” para terminar a entrevista?
(Risos). Sim! Essas brincadeiras são naturalmente da nossa portugalidade. Ficar sentado num café a ouvir, numa cidade ou vila (que é mais pitoresco), as ideias para as músicas vão-se acumulando. O bom de Portugal é que não é preciso muito.

Concertos em agenda:
07/04, 21h30 – Teatro do Bairro (Luísa Sobral como convidada), Lisboa.
08/04, 22h00 – Passos Manuel, Porto.
15/04, 21h30 – Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra.

Os Anaquim são: José Rebola (voz, guitarra eléctrica, guitarra acústica, guitarra manouche, slide guitar, ukelele, banjo, bajolete, percurssão); Pedro Ferreira (pianos, teclados, acordeão, coros); Luís Duarte (guitarra acústica, guitarra manouche, coros); Filipe Ferreira (baixo eléctrico, baixo acústico, contrabaixo, coros); João Santiago (bateria, percussão). Músicos convidados: Jorge Palma, Luísa Sobral, Quiné Teles, Daniel Tapadinhas, Gabriel Gomes.

+ Anaquim
© Fotografia: Direitos Reservados.

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