“António e Maria” / Teatro Meridional

António e Maria poderão parecer nomes demasiado comuns para o encontro de um autor e de uma atriz extraordinários: António Lobo Antunes e Maria Rueff. Mas é justamente esse o mote: a partir do trivial, nasce o sublime.

«A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão». São esses estilhaços que nos atingem em cheio, ao assistirmos a António e Maria, espetáculo com encenação de Miguel Seabra e coprodução do Teatro Meridional e do Centro Cultural de Belém, em que, ao longo de 70 minutos em palco, Maria Rueff protagoniza um «monólogo múltiplo de mulheres». Recortadas do imenso – e intenso – universo das crónicas e romances de António Lobo Antunes, pelo jornalista e também escritor Rui Cardoso Martins, essas mulheres são personagens que caminham por entre os fragmentos de que as suas existências se compõem, que se movem nas franjas de um quotidiano, por vezes tão desolado e hostil como um cenário de guerra, por vezes anódino, patético, risível. Uma espécie de tragicomédia que é, afinal, uma das respirações mais originais e fascinantes da obra do escritor.

Em Lobo Antunes, algumas vozes são gritos ensurdecedores, outras apenas ecos, reverberações, silêncios. Com Maria, há uma intensidade assombrosa e a capacidade plena de transmitir e gerir essas modulações, de ser tantas e tão diferentes vozes: desde a gargalhada de uma criança, suspensa nesse voo de felicidade plena que é o da infância, mas donde acabará por cair, desamparada; às confissões da “solitária mulher divorciada”, entrecortadas pelos habituais telefonemas inquisitivos da mãe; ou à ladainha da reformada, descompondo o marido que, a despropósito, resolve morrer em local público.

A atmosfera de «melancolias resignadas» que atravessa a obra de Lobo Antunes faz-se representar, no espetáculo, por um sofá, concedendo ao quotidiano que se instale, que se acomode, que se exponha, e que, acima de tudo, se revele. Epicentro cénico, a partir dele  se hão de produzir as ondas de choque, ampliadas a uma escala imprevista por uma construção de reflexos e pelas sonoridades trabalhadas por Rui Rebelo.

Na crónica «Receita para me lerem», em que retoma uma outra, «O coração do coração», também nuclear para a compreensão da sua arte romanesca, afirma Lobo Antunes: «Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum dos dois saber qual dos dois somos». Em palco, António e Maria iluminam-se um ao outro. E devolvem-nos a surpresa de nos descobrirmos, também, reflexos daquelas vozes.

Duração | 70 min (aprox.)
Classificação Etária 
| M/16
Próximo espetáculo:
14 de Maio, ACERT, Tondela.

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