“Rest Energy”: Marina Abramovic e Ulay em 1980

Aconteceu em Dublin há 40 anos, quando Marina Abramovic e Ulay mantinham uma fértil e intensa relação, tanto afectiva, como criativa: durante 12 anos ardeu, incandescente, uma chama comum a que não se furtaram, nem ela, nem ele, porque também não podiam, a bem da verdade.

Vivemos, ou vivíamos, num estado tal de sociedade em que se procura(va)m explicações razoáveis para tudo: espero, sinceramente, que a experiência colectiva tão profunda que nos acometeu, e se faz sentir, sem ainda dela sabermos os efeitos futuros, nem com a maior exactidão da peritagem moderna do devir a que nos habituaram, possa de forma derradeira restituir à comunidade humana o mistério da existência. Este mistério, estou em crer, é encarnado de forma exemplar pela/na arte e pelo/no amor: “Rest Energy”, performance que durou cerca de 4 minutos, junta os dois, de forma despojada, nua e crua, simbolicamente saturada e com densidade indesmentível. Marina Abramovic e Ulay dispunham de dois discretos microfones junto aos respectivos corações, a permitir acarear o crescendo da intensidade propiciada por, apenas, 4 minutos de risco, perigo, mercê, mas também de confiança inabalável. 

É mesmo muito importante acentuar o facto de Marina poder morrer em qualquer lapso de tempo presente naqueles 4 minutos, às mãos de Ulay, mas às de si própria, já que segurava firmemente no arco que apontava a flecha, certeira, ao seu coração. Neste entorno, uma e outro colocaram mesmo as “mãos no fogo” por uma e outro: não é caso para vilipendiar. Pode-se, eventualmente, questionar o facto de ser a mulher a permanecer em estado de risco, perigo, mercê; todavia, e pela outra face da moeda, o elemento masculino tem nas suas mãos uma responsabilidade ilimitada. Façamos, então, o seguinte exercício: esqueçamos por um momento que se trata de Marina e de Ulay, transferindo o momento para um plano a que chamarei metafísico, com aquela a preconizar o feminino e aquele a preconizar o masculino, ambos em relação com o Tempo. Não se vê, tão bem, encarnada, uma relação histórica ponderada, que tanto se dirige ao Passado, que redime, como ao Futuro, que liberta? 

Explico-me. Simone de Beauvoir, na obra máxima que abre essencialmente caminho para o feminismo actual, mesmo actual, ou seja, O Segundo Sexo, também diz que “A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autónomo”, para, em lembrança de Michelet, o citar: “O corpo do homem tem um sentido em si, abstraindo do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não se evoca o macho…Pensa-se o homem sem a mulher. Não ela sem o homem.” A ponderação que se destaca das palavras de Simone de Beauvoir e de Michelet dá conta de uma imagem bem alicerçada na actualidade, mesmo actual, vindo as mulheres na gravitação da vontade masculina; e lembre-se, para não se menosprezar, a mise-en-scène passível de ser observada hoje, claro e também. Apenas talvez interessasse avisar que o mundo já não é um palco, nem sequer uma escola, como Peter Sloterdijk tão bem o explica: a aprendizagem contínua sucedeu à disposição criteriosa das cenas e, talvez, quem quis depois ensinar tivesse sido quem antes procurou encenar; todavia, nem uma coisa, nem outra, atingem o coração, seja o das mulheres, sejam o dos homens, seja o de Marina Abramovic, ou o de Ulay. 

Misteriosa, “Rest Energy”, uma performance sem dúvida radical, mostra-nos exactamente que mulheres e homens estão nas mãos de uns e de outras, mútuas: 4 minutos para 4 mãos; uma liberdade finita para uma responsabilidade infinita, de acordo com o que Emmanuel Levinas também alertou.

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