João Rodrigues fala sobre pessoas apaixonadas pelo que fazem e da ideia de aproximar chefs, produtores e consumidor final. Reforça a necessidade de acrescentar valor ao produto, promover a sustentabilidade a quem o produz e apostar na educação alimentar. E quer ver o seu site ser utilizado como ferramenta de trabalho multidisciplinar para, mais tarde, materializar esta que é, por ora, uma rede de contactos.
Projecto Matéria é o nome do site de João Rodrigues, chef do Feitoria (1 estrela Michelin e Garfo de Platina da edição de 2020 do guia Boa Cama Boa Mesa), restaurante do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa. Reúne produtores, produtos e outros projectos de vários pontos do país. A pesquisa é simples. Basta procurar pelo nome do produtor, pelo produto ou pela região a explorar virtualmente. O mapa é, por si só, um convite para viajar por Portugal, descobrir o que por cá se faz e onde é produzida determinada matéria-prima.
“É a materialização do que vínhamos a fazer há alguns anos”, esclarece João Rodrigues, a concretização de um trabalho que começou em 2016, quando o chef, natural de Lisboa, decidiu investir na procura pelo produto país afora, para melhor perceber como era criado e produzido, e conhecer as histórias que estavam por detrás de cada um. Eis a génese dos Menus Matéria, seguindo-se a criação e organização dos Jantares Matéria, em que João Rodrigues convida chefs d’além fronteiras, juntando-os aos seus congéneres de dentro de portas e levando-os a visitar produtores de regiões de Portugal, para lhes mostrar os produtos da nossa terra e da nossa costa.
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O site Projecto Matéria desencadeou reacções em pessoas das mais variadas áreas – desde produtores a pessoas ligadas à gastronomia, desde fotógrafos a pessoas associadas às artes. “Muitas pessoas nos contactaram sem ter propriamente a ver com cozinha a manifestar que tinham adorado o site e o que representava”, afirma o chef.
A entrada no universo online coincidiu com o início do confinamento – em Março de 2020 –, quando a falta de tempo deixou de existir para muitos, daí que muitas tivessem tido o vagar para visitar o Projecto Matéria na Internet. “O networking, supostamente, seria com chefs e os produtores, porque são as pessoas que lidam directamente com os produtos, que os transformam e os produzem, mas a ideia final do Projecto [Matéria] é aproximar a cadeia toda, desde o chef e o produtor ao consumidor final, que vai experimentar o produto, seja no restaurante, seja em casa. Por isso, dizemos que este projecto é sobre pessoas.”
A prova está no acesso “aberto” a todos os que estejam interessados em esmiuçar esta viagem pelos produtos portugueses, mas também a quem dá a cara pela sua matéria-prima. “Acho que esta é a única forma de criar valor no produto e no produtor porque, atribuindo um rosto ao produto – não sendo só o produto em si, mas tendo uma cara associada, uma história –, conseguimos valorizar esse produto. Ao criarmos valor, criamos interesse. Quando há interesse, mais gente quer ter acesso e também se cria sustentabilidade para o próprio produtor”, explica.
Ao mesmo tempo, foram criadas estruturas para encomendar matéria-prima de qualidade que, por sua vez, resulta numa alimentação mais saudável. “Agora depende das pessoas quererem continuar e ter consciência, e usar essa informação do seu lado, para poderem decidir que produtos querem.”
Dar a ler pessoas
A produção nacional é vasta ou não houvesse várias formas de produzir o mesmo alimento, mas João Rodrigues definiu critérios muito específicos para quem fizesse parte da “galeria” do seu Projecto Matéria. “No site defendemos um certo tipo de produtor, que são pessoas absolutamente apaixonadas pelo que fazem, que fazem produtos de qualidade e o fazem de uma forma ética. São amigas do ambiente, sem intervenção nem utilização de químicos”, esclarece. “Estou a falar de produto ‘limpo’, o que não quer dizer que não haja produtores com práticas diferentes, até porque seria possível alimentar o mundo só à conta dos pequenos produtores!” , declara.
“Se acho importante a produção nacional e o consumo de produtos nacionais? Acho fundamental! E acho fundamental que haja informação para que as pessoas possam fazer a escolha em consciência dentro da produção nacional, seja em suas casas, seja nos restaurantes onde vão comer.”
Tempo do mudar
A mudança de mentalidades é, face ao Projecto Matéria, fundamental. João Rodrigues quer mostrar, por essa razão, o desfasamento que existe entre a origem de um produto, as suas tradições, e a forma como é feito. “No fundo, o que nós queremos é criar valor nestes produtores que não usam químicos, o que os obriga a ter um trabalho redobrado para proteger as suas produções de forma natural e, ao mesmo tempo, terem um produto de grande qualidade.” Queremos que, aos poucos, as pessoas tenham a percepção de que existem estes produtores, o que fazem e as dificuldades pelas quais passam e, no fim, façam as suas escolhas em consciência.”
Trabalhar na educação alimentar é outros dos objectivos do Projecto Matéria. “Quisemos ir perceber como poderíamos fazer um acção a uma escola – um almoço com estes produtos matéria –, mas foram impostas muitas barreiras, por questões de segurança alimentar e pelo facto destes produtores não estarem certificados para poderem abastecer este tipo de instituições.” O chef do Feitoria reforça a importância da segurança alimentar e dos cuidados de higiene a ter nas cozinhas das escolas, “mas a qualidade é posta um bocadinho de lado”, adverte.
João Rodrigues nomeia a Dinamarca com um exemplo a seguir, já que a alimentação saudável faz parte da educação escolar daquele país da Escandinávia. “Se calhar seria algo muito importante explorar a criação desta dinâmica desde o início e os miúdos, em casa, terem o seguimento do que aprendessem na escola.”
E agora?
Com o regresso de muitos ao local de trabalho, a falta de tempo parece voltar ao passado. Será que esta procura vai manter-se? “Acho que todos os espaços vão encaminhar-se para a produção nacional o que, automaticamente, fará com que as pessoas continuem a consumir o que é nacional.” No entanto, muito ainda há para fazer no campo da produção, bem como da informação, para que a escolha em consciência seja feita por parte do consumidor final. “Por isso, dizemos muitas vezes que o importante são as pessoas, daí a necessidade de as visitar e visitar os espaços, ver o que fazem e investir tempo em perceber. Só depois de estarmos lá é que conseguimos testar a qualidade do que é feito e o trabalho que lhes é intrínseco.”
Há alguém que escreve as histórias que se complementam com a reportagem fotográfica, muitas vezes, captada pela lente da câmara de Vânia Rodrigues, mulher e braço direito de João Rodrigues neste que é mais um grande desafio das suas vidas. “Acho engraçado que, quando se faz a soma, se perceba onde estão estas pessoas no mapa, ver a distância entre cada uma delas.” Assim mostra o chef lisboeta um país ainda desconhecido para muitos, como o interior, há muito abandonado, e as suas paisagens predominadas por uma imensidão de bosques a explorar, entre outras regiões a (re)descobrir. “Damos uma imagem muito real do nosso país e de coisas fantásticas que se fazem por aí e que as pessoas nem sequer sabem que existem.”
Evoluir para perpetuar
Acontece com os costumes, as origens, as tradições que, segundo João Rodrigues, devem evoluir, para que sejam eternizados no tempo. “Se fossem estáticos, não poderíamos perpetuar conhecimento, portanto, é importante que esta evolução seja feita.” É uma evolução que tem a ver com o melhorar. “Acho que o Homem, de uma forma geral, avança exactamente porque quer fazer mais e melhor, e quando essa energia é usada para fazer bem e não fazer muito e ganhar muito, acho que se torna fundamental, por si e para quem o rodeia.”
A valorização do produto é, por conseguinte, outro dos aspectos apontados como primordiais nesta cadeia protagonizada por produtor, produto e consumidor final. “Não havendo a valorização do produto, as pessoas continuam a valorizar o preço. A concorrência torna-se desenfreada, porque o custo é desenfreado e o ganho é pouco. Depois acabam por produzir em escala, para proteger as suas produções, acabando por desvirtuar todo o sistema. Quem sofre com isso é o consumidor final que, por sua vez, quer comprar mais barato. É um ciclo vicioso que tem de ser combatido pelo lado da informação. Não basta apregoar, tem de se comprar.”
Com futuro
Miguel Neiva Correia, mentor do projecto hortícola Hortelão do Oeste, Florent Ladeyn, chef do Auberge du Vert Mont, em Boeschèpe, Lille, França, João Rodrigues e João Simões, chef do restaurante Casta 85, em Alenquer, na Quinta do Archino, em Alenquer, na apresentação de produtos nacionais ao chef convidado para o segundo Jantar Matéria, no Feitoria
A vontade de “acolher” mais pessoas no Projecto Matéria começa a ganhar corpo, nomeadamente com aqueles que se cruzam com a gastronomia. São trabalhos que, sob o ponto de vista de João Rodrigues, merecem visibilidade e, simultaneamente, permitem incrementar a ideia de conectividade, “de trabalho em conjunto em prol de uma comunidade”, que é intrínseca ao site.
Alargar horizontes é, neste caso, uma das premissas a ter em conta, já que existe a vontade de ir mais além. “Queremos que, no futuro, o projecto e o site sejam uma ferramenta de trabalho para quem a quiser usar e que pode ter ali vários trabalhos condensados. Esse é o passo que estamos agora a construir, ao mesmo tempo que estamos a focar-nos nos produtores. Mais tarde, a ideia passa pela materialização de tudo isto”, remata João Rodrigues.