A naturalidade com que faz um vinho advém da experiência adquirida pelo tempo, que remete para um potencial de guarda indissociável ao experimentalismo constante de quem procura a precisão na adega. É aqui que entra a comida e, claro, o vinho da Casca Wines, para harmonizar e brindar com as palavras.
Depois de Vítor Sobral, chegou a vez do chef alentejano Leopoldo Calhau levar a Taberna do Calhau, da Mouraria, para o interior da Casca Wines, a adeja, loja e sala de provas do Casca & Friends, no Estoril, por ocasião de mais uma comemoração dos 20 anos dedicados ao ofício de enólogo do seu fundador, Hélder Cunha. O pretexto serve, simultaneamente, para mostrar como é possível “reavivar tradições à volta do vinho”, bem como promover a sustentabilidade e as boas práticas ambientais na vinha. Ou não fosse o nosso anfitrião produtor de vinho feito com uvas provenientes de dez das 14 regiões vitivinícolas de Portugal – na lista das excepções cabem Trás-os-Montes, Algarve, Açores e Madeira. Mesmo assim, sobre esta última, avança: “está para breve.”
Voltemos ao pretexto de juntar o vinho e a comida. Sobre o primeiro, Hélder Cunha fala sobre os conceitos biológico e vegan, que constam no 1808 Colheita branco 2020 e no 1808 Reserva branco 2020, feito a partir das castas Síria – típica da Beira Interior – e Chardonnay. “São dois mundos completamente diferentes.” Por um lado, “está a agricultura biológica, em que não se usaram produtos de síntese, ou seja, que não são degradáveis”, devido às condições edafoclimáticas da Beira Interior – região vitivinícola de onde são provenientes as uvas usadas na produção de ambos os vinhos –, “que facilitam a produção biológica”, explica Hélder Cunha.
Por outro lado, o enólogo sentiu a necessidade de entrar noutro tipo de mercado, daí a aposta na produção de vinhos vegan. Para o efeito, é preciso substituir a proteína animal, comummente utilizada para acelerar a decantação, logo após o término do processo de fermentação no processo de vinificação. Foi o que fez Hélder Cunha em 2015, com a finalidade de encontrar a proteína certa “e que não interagisse com as características organolépticas do vinho”. Descoberta a proteína de origem vegetal, o enólogo passou a usá-la na vinificação das uvas tintas, “porque nos brancos é mais fácil fazer um vinho vegan”, esclarece, daí ser considerado um dos pioneiros na produção de vinhos vegan.
A próxima paragem foi na região dos Vinhos do Tejo, território vitivinícola em que Hélder Cunha vindimou a matéria-prima utilizada no Monte Cascas Fernão Pires 2014. Esta é a sexta edição desta referência do portefólio da Casca Wines, limitada a 1.300 garrafas, que hão-de chegar ao mercado antes do Natal de 2021.
As uvas foram colhidas numa vinha plantada em 1899, num terreno de transição entre a charneca e a lezíria, localizado num lugar do concelho de Almeirim, “o berço da Fernão Pires”, segundo Rodolfo Tristão, escanção e nome que consta na lista do Casca & Friends.
“Hoje estamos a beber o último Fernão Pires desta vinha de 1899”, comenta o enólogo. Porquê? Porque a vinha, outrora pertença do Sr. Borrego, fora arrancada. Já o vinho, produzido “com a mínima intervenção na adega”, está na origem dos vinhos naturais do enólogo.
O próximo destino desta viagem à mesa foi a Beira Interior, com Cascale Orange 2020, a boa nova do portefólio da Casca Wines. Trata-se de um vinho natural feito a partir de uvas da casta Síria, seleccionadas numa vinha em modo produção biológica certificada, localizada a 700 metros de altitude, e que espelha o carácter experimentalista e de precisão de Hélder Cunha. “Fizemos uma maceração [contacto prolongado das uvas com as películas] mecânica por dez dias” , processo que “exerce uma acção física sobre as uvas, para se extrair o máximo de sabor e de cor”, esclarece o nosso anfitrião. Seguiu-se o estágio, entre dez a 12 meses, em barricas usadas, onde “ganha esta cor”.
Mas há mais para além deste vinho “laranja”. Álvaro Leite Siza, arquitecto, como o pai, Álvaro Siza Vieira, usa o abstracto, para representar a ligação do ser humano com o mundo vitivinícola, no rótulo deste Cascale Orange 2020. “Este é aquele momento em que o enólogo sente que há arte no vinho.”
Ainda pelo Alentejo, Hélder Cunha reinventa a tradição do petroleiro, tradicionalmente pedido por quem frequenta as tascas daquela região. Chama-se Cascale Petroleiro 2020 – a 2.ª edição, depois da colheita de 2019 – é um vinho de talha produzido na Adega XVI Talhas, em Vila Alva, cuja origem é o palhete, feito a partir “da mistura de castas brancas e tintas”, mas “não queria um petroleiro de tasca. Tinha de ter esta estrutura”, realça o enólogo.
A sua produção inclui oito castas vindimadas em vinhas velhas, localizadas perto da adega, as quais permaneceram por oito meses na talha. “Este é o único dos três que não é um DOC Alentejo.”
Recuemos, agora, à colheita de 2018, para a apresentação do Cascale T. tinto, um DOC Beira Interior, composto pelas castas Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca. É o único tinto natural do portefólio da Casca Wines. “Fazer este vinho natural foi mostrar que não precisam de ser defeituosos” e que “são agradáveis de beber”.
Para o final, Hélder Cunha guardou o elegante Espumante Reserva Monte Cascas Branco Magnum 2014, de Távora-Varosa, a primeira região demarcada de espumantes de Portugal.
Sobre Hélder Cunha, fica a história destes 20 anos dedicados à enologia. Começou em 2000, numa vindima em Napa Valley, Califórnia, onde se inspirou para a criação do seu actual projecto vínico. Regressado a Portugal, trabalhou com Rui Reboredo Madeira e Anselmo Mendes, “dois grandes professores”, e foi responsável pela enologia dos Vinhos Borges. “Ganhei uma experiência, como se de um curso intensivo se tratasse.”
Em 2008, fundou a Casca Wines, com o objectivo de produzir vinhos de grande qualidade, no país, percurso iniciado na Região Demarcada de Colares, onde conheceu José Baeta, proprietário da Adega Viúva Gomes, cujo edifício ostenta o ano de 1808, data da sua fundação, que também é marca de vinhos do portefólio da Casca Wines, desenhada em homenagem ao homem que o recebeu em terras sintrenses. Este foi, apenas, o ponto de partida para uma longa viagem país afora e sem fim.
A produção vínica ultrapassa, hoje, a meia centena de vinhos e vai desde o Minho ao Alentejo, passando por Beira Interior, Dão, Bairrada, Lisboa, Tejo e Setúbal. Imparável, o enólogo, que queria ser médico, mas acabou nas salas do Instituto Superior Agrónomo, em Lisboa, para estudar Engenharia Agro-Industrial, revelou que a marca Cascale vai crescer, mas como são vinhos naturais, “feitos a partir de castas portuguesas”, tudo pode acontecer. “O importante aqui, é ‘trazer para a frente’ a forma como a casta é cultivada e produzida, e com menos intervenção ainda, na adega.”
Brindemos!