Todas las canciones hablan de mi, de Jonás Trueba (2024)

Elogio da conversa, capítulo I

Todas las canciones hablan de mí, de Jonás Trueba
DA VAGA DE SALA – Especial Leffest

“A conversa é, entre outras coisas, um jogo e um puzzle que nos permite ler o pensamento. Temos de estar sempre a adivinhar por que motivo as outras pessoas dizem o que dizem. Nunca podemos estar certos de quando as palavras irão começar a dançar umas com as outras, as opiniões a acariciar-se, a imaginação a despir-se, os temas a abrir-se. Mas podemos tornar-nos mais hábeis se o desejarmos. Por que é tão difícil dizer o que sentimos à pessoa que amamos?…”, lemos na sinopse do livro ‘Elogio da Conversa’, de Theodore Zeldin. Já passaram alguns anos desde que li esta obra, mas o cinema, um certo cinema, faz-me voltar às recordações, que ficaram gravadas na minha mente, desse autêntico manual de instruções para (bem) conversar. Por um lado, arrependo-me de nunca tê-lo comprado, pois estaria sempre à mão, mas, por outro, a ideia de resgatá-lo novamente na biblioteca e sentir que tenho o tempo contado para embrenhar-me nele é algo que especialmente me agrada. Penso em Éric RohmerJean EustacheWoody AllenHong Sang-soo e Jonás Trueba como aqueles que mais convertem o cinema num elogio da conversa. Este domingo, no Cinema São Jorge, ao ver a última cena de Todas las canciones hablan de mí  (2010)  [Todas as canções falam de mim] – primeira longa-metragem de Jonás Trueba, em retrospetiva no Leffest  corroborei essa minha premissa de que Trueba está nesse rol de mestres de cinema-conversa; premissa essa que surgira depois de ver La Reconquista (2016) [A Reconquista], primeiro, e Téneis que venir a verla (2022) [Têm de vir vê-la], depois. Dos três filmes que agora conheço do cineasta espanhol, La Reconquista continua a ser o meu predileto, talvez porque tenha sido o primeiro que vi, e talvez não haja mesmo amor como o primeiro, ou talvez porque esse filme deu-me a conhecer a Fernet-Branca – como já contei noutras ocasiões -, essa bebida que de tão amarga chega a ser doce.

Voltemos então à cena derradeira de Todas las canciones hablan de mícomposta por um demorado penúltimo plano (fixo) ao qual se soma, quase como apêndice, o breve plano final. Após o término do relacionamento de seis anos entre Ramiro (Oriol Vila) e Andréa (Bébara Lennieová), após seis capítulos que contam e separam o filme como se fosse um livro, abre-se o VII e último capítulo, intitulado de ‘Amor Transparente’, precisamente o nome do livro de poemas que o protagonista acaba de editar, eis que Jonás Trueba  entrega à conversa, ao seu poder, a tentativa final de reconquista, de Andrea, por Ramiro.  São as palavras ditas, faladas, por ele, que à última se sobrepõem às palavras escritas, também por ele, numa carta – não lida – que ela segura e aperta com as mãos (este apertar de carta pelas mãos é o tal plano-apêndice que encerra o filme). Só poderia ser desta forma, digo, depois de já conhecer outros (dois) filmes de  Trueba. É com uma certa sofreguidão, repetições, improviso, sentido de humor possível, palavras muitas, que Ramiro se entrega ao veredito de Andrea,  enquanto esta, de costas repousadas no tronco da árvore, olha para ele em silêncio e fala com o corpo: a respiração produz movimentos ligeiros no peito e no ventre. Quando ele se cala e ela calada continua, aumenta e acelera, respetivamente, o volume e a cadência das notas de jazz – sem voz, claro, porque a conversa cessara -, cabendo assim à música reverberar o derradeiro fogacho de emoções: dele, dela, do filme, nossas.

Todas las canciones hablan de mi, de Jonás Trueba (2024)

Este entregar do destino final à conversa é o culminar natural de uma história repleta de diálogos, monólogos, voz-off do narrador e canções (diegéticas), aquelas que conversam e falam dele, de Ramiro, ou para ele, assim diz o filme, assim nos mostra e assim nos faz ouvir. Quando está no quarto com Sílvia (Valeria Alonso), uma amiga argentina, de Ramiro e do seu comparsa Lucas (Bruno Bergonzini),  que precisa de casar para obter cidadania, a canção diz-lhes que é uma “Canción para Follar” [Canção para foder], enquanto a caliente argentina descalça a bota e espoja o corpo com o vestido na cama dele; quando está sozinho no quarto outra canção fala como ele de “La Estaciòn de Los Amores” [A  Estação dos Amores] que vem e vai e chegará sem avisar, enquanto Ramiro fica um bom bocado encostado à velha aparelhagem – bem que Trueba disse-nos na apresentação, antes do visionamento, que todos os seus filmes são anacrónicos, e, aqui, mesmo considerando que estamos em 2010, quer o aparelho que reproduz o som quer a própria música (que imaginamos um cinquentão ou sessentão a ouvi-la e não um jovem adulto) remetem para um fora-de-moda que o seu protagonista veste a preceito – enquanto pensa no amor perdido, que partiu mas pode voltar, de Andrea, entre novos amores que podem chegar, não de Sílvia, mas da antiga colega Irene ou da irmã mais nova de um amigo antigo, Raquel. Há aqui um cheirinho a ‘Conto de Verão’ (1992), de Rohmer, e a Manhattan (1979), de Allen, com um Ramiro feito de uma costela de  Mélvil Poupaud e uma costela de Woody.

E os diálogos são sempre bons de se ouvirem no filme, nunca entediam, quanto mais eles falam, mais queremos ouvir, incluindo as notas de humor bem presentes, desde um outro amigo que confessa a Ramiro e Lucas que foi apanhado a masturbar-se pela esposa e que a culpa é dos apartamentos de agora, pequenos, já sem aqueles longos corredores que atravessavam a casa inteira, noutros tempos; ou sobre o tempo de recuperação que é necessário após término de relacionamento (metade do tempo total), que esse amigo leu numa revista e que fala daquilo como se tratando de algo de prova científica; ou sobre o cheiro do livro acabado de sair da tipografia, quentinho e cheiroso, como o pão, diria eu, sobre o qual o tio-dono da livraria onde Ramiro trabalha diz que cheirando assim só pode ser bom o conteúdo; ou as referências à paisagem urbana que Andrea, arquiteta, vai fazendo e que Ramiro considera que nesses momentos ela está a falar mais para ela própria do que para ele – e bem que por vezes é mesmo assim, falamos de algo com quem gostamos, e estamos à vontade, para sentirmos que podemos, sabemos e conseguimos expressar algo sobre determinada coisa, para reforçarmos a nossa autoconfiança -; ou ainda a história que Andrea conta sobre um arquiteto sueco que foi a Roma para analisar e propor mudanças numa praça, num concurso de reabilitação, e, ao fim de alguns dias de permanência no local, concluiu que nada devia ser mudado – salta aqui à vista, pela conversa, o tal anacronismo identitário de Trueba, numa sociedade que vive de uma constante, irresistível e irremediável necessidade de mudar, esquecendo-se que muitas vezes mexer é estragar – e como as cidades têm sofrido com o desvirtuar da sua paisagem, na relação harmoniosa entre arquitetura, vida, natureza e pessoas.

Curiosidade imensa para seguir os próximos capítulos deste elogio da conversa que é o cinema de Trueba.

Todas las canciones hablan de mí,  de Jonàs Trueba (2010)
Visionado no Festival Leffest, Cinema São Jorge