'A Semente do Figo Sagrado', de Mohammad Rasoulof

Fé, submissão e obediência absoluta

‘A Semente do Figo Sagrado’, de Mohammad Rasoulof
| DA VAGA DE SALA

Numa altura em que as redes sociais são veículos tremendamente preponderantes na disseminação de fake news, visando a construção de uma pós-verdade que possa ganhar lastro na sociedade, com o intuito de descredibilizar instituições, atacar o sistema, e abrir caminho a uma nova (des)ordem no seio das democracias liberais, diria que os media, naquilo que ainda qualificamos como imprensa livre, são uma espécie de último reduto na defesa, cada vez mais condicionada, da realidade. Paradoxalmente, o que não deixa de ser curioso, nos regimes ditatoriais, totalitários, autocráticos ou teocráticos, tanto faz, as redes sociais emergem como canais de transmissão da realidade, sem filtros, em oposição aos media tradicionais, capturados e manietados pelo Estado, cuja missiva passa por fazer contrainformação servindo exclusivamente o superior interesse da nação, leia-se, do regime. Aliás, controlar a comunicação – e a justiça, claro – é o passo em frente que um Estado dá sempre quando se quer afastar da democracia e aproximar-se do autoritarismo: assim vimos acontecer há uns anos na Polónia, com a ascensão ao poder do Partido Lei e Justiça (extrema-direita), assim constatamos na democracia iliberal de Orban na Hungria, ou, mais recentemente, na Geórgia, com a vitória do candidato presidencial apoiado pelo Partido Sonho Georgiano, pró-russo. Quanto às ditaduras estabelecidas, digamos que a imprensa livre não passa de uma miragem. Mas o controlo da comunicação estende-se também às redes sociais, claro, talvez nem todos os regimes ditatoriais tenham ainda a sofisticação digital da China e, por isso, ainda vão escapando e circulando vídeos menos abonatórios para os respetivos Estados, como vimos, por exemplo, não há muito tempo, no Irão. Quando em 2022, a jovem Mahsa Amini, de 22 anos, morre às mãos da polícia da moralidade iraniana, após uma detenção motivada por uso desadequado do hijab [véu que cobre os cabelos da mulher], as manifestações proliferam nas ruas de Teerão e pelas redes sociais multiplicam-se os vídeos onde não se conseguiu ocultar a repressão e violência policiais. Em ‘A Semente do Figo Sagrado’ (2024), de Mohammad Rasoulof, o realizador exilado na Alemanha prossegue na sua cruzada contra a pena de morte no Irão – já exemplarmente retratada em ‘O Mal Não Existe’ (2020)  -, desta feita, alinhando-a com os eventos de 2022 (após a morte de Mahsa Amini).

Em ‘A Semente do Figo Sagrado’ vemos Rasoulof aprofundar aquilo que expusera em ‘O Mal Não Existe’, ou seja, o alastrar de ramificações das leis do regime: do geral para o particular, da sociedade para a família, da rua para casa. “Fé, submissão e obediência absoluta a Deus”, assim responde o pai Iman (Missagh Zareh) às duas filhas, a jovem Rezvan (Mahsa Rostami) e a irmã mais nova Sana (Setareh Maleki), a caminho da juventude, quando questionado sobre o porquê das mãos no peito que vemos no velho retrato de família. “Isso é aquilo que o pai quer de nós”, brinca uma delas, que não está nada longe da verdade. Iman foi promovido no sistema judicial iraniano e agora é uma espécie de investigador pré-juíz, saltando-lhe para as mãos a responsabilidade de assinar, ordenar e decretar execuções da pena de morte – as balas que caem sonoramente na mesa, acompanhadas pela caneta, pelo papel, e pelas mãos, no primeiro plano do filme, ilustram antecipadamente a sua previsível missão. Ao contrário de em ‘O Mal Não Existe’, em que os homens eram soldados rasos na linha de execução, aqui, Iman está acima, ainda que receba ordens não muito diferentes, num sistema hierárquico verticalmente rígido; está mais longe da desumanidade terrena da consumação do ato e, consequentemente, mais próximo, ainda que sem livre-arbítrio, da missiva divina: decidir quem vive e quem morre. Ainda nos momentos iniciais do filme, vemos Iman rumar no lusco-fusco da madrugada a um templo perdido nas montanhas – supostamente a terra natal para onde o filme transporta a família no último terço – para uma oração de agradecimento, pela promoção: como uma escolha divina, um ordenamento profético. O endeusamento da sua figura começa a ganhar relevo dentro de casa – ao contrário do trabalho, onde é fortemente pressionado e instruído pelo superior -, afastando-se da família, especialmente das filhas, refugiando-se no quarto, refastelando-se na cama de madeira austera, sempre sob os cuidados e mimos da dedicada esposa, Najmeh (Soheila Golestani), que lhe apara o cabelo, trata da barba, lava-o, num relaxamento absoluto digno de um paraíso prometido no céu, mas vivido na terra; só falta Najmeh abotoar-lhe a camisa branca até ao colarinho (quase) apertar o pescoço para que a imagem do profeta, do escolhido, do missionário de Deus, esteja impecavelmente completa.

Em contraste com os homens de ‘O Mal Não Existe’, que ora rejeitam lidar com um fardo tão pesado para um vulgar humano, ora vivem com ele como um sufoco preso na garganta, no olhar, no pensamento, Iman investe nessa missão divina, como que respondendo a um desiderato construído a partir daquele retrato de família quando era criança – fé, submissão e obediência absoluta a Deus – mesmo que isso implique viver no desconforto constante que demonstra. A pistola que lhe é atribuída pela hierarquia, de modo a que possa proteger-se a si e aos seus em qualquer momento, e que deve acompanhá-lo constantemente, é como um bastão divino, que lhe transmite esse poder. E quando desde cedo percebemos que a presença da arma em casa trará, mais tarde ou mais cedo, consequências dramáticas, Rasoulof  surpreende-nos e, em vez do uso do fogo das balas, faz uso dela (a pistola) como quebra-cabeças de um labirinto que traz o sistema, o regime e as suas leis para o seio da família. Antes do regime se ramificar dentro de casa, são os gritos de revolta, apelando ao fim da teocracia, que, vindos da rua, entram pelas janelas; são os vídeos virais nos telemóveis com a repressão policial nas ruas – em antítese com a televisão iraniana, que alterna entre as notícias enviesadas ou a absoluta indiferença – que as irmãs partilham entre elas e que forçam a mãe a ver; é o sangue que jorra no rosto da amiga (e colega na Universidade) de Reznan, que traz para casa da família a imagem horribilis de um regime cuja verdadeira faceta está estampada naquele rosto ensanguentado que a mãe das raparigas é forçada a tratar, sob uma fina e parca luz do sol que irrompe e poisa no rosto mutilado da jovem – a câmara detém-se, a música envolve-nos, confortando-nos e enraivecendo-nos, em simultâneo, até saltar para um grande plano de rosto da médica improvisada, a mãe Najmeh, confrontada com o choque da verdade; dali a câmara saltita até ao rosto choroso de Reznan e, por fim, até à palidez no rosto petrificado de Sana.  

E assim, progressivamente, Rasoulof  vai trazendo as ruas e as revoltas que tomam conta delas para dentro de casa. Não sem antes ampliar os vídeos que circulam nos telemóveis para que estes capturem o ecrã e se transformem por momentos no filme: cinéma vérité, dir-se-á. E perante a revolta, a insubordinação, a afronta, o regime endurece, radicaliza, persegue, magoa, também em casa, num transfer completo do geral para o particular, da sociedade para a família. Quando, numa panorâmica, a câmara roda, no escuro da madrugada, em volta do desnorteado Iman, percebemos que se deu o ponto de viragem, um ponto de não retorno, para um labirinto mental e físico cujo desfecho é repleto de uma estendida imprevisibilidade de fim previsível, num autêntico jogo do gato e do rato em que a filha  Sana veste (literalmente) a camisola de Mickey e o pai ganha olhar de gato enraivecido. Creio que não terá sido nada inocente entregar a força e o comando final da resistência à filha mais jovem (Sana), pois será certamente nas gerações mais novas que  estarão depositadas esperanças maiores para contrariar essa fé, subordinação e obediência absoluta a uma teocracia intolerante e repressiva.

The seed of the sacred fig (2024), de Mohammad Rasoulof
Visionado na Sala do Cinema Nimas