O que pode a arte neste mundo que descarrila a olhos vistos, sem conseguirmos vislumbrar uma sensatez por parte dos líderes e em que as mulheres são reduzidas à figura de partenaire?
Não é por acaso que utilizei a palavra “descarrila” para qualificar o estado actual do Mundo, já que ela remete para o comboio/locomotiva que fez a sua entrada na “cena” da história nos inícios do século XIX e assumiu foros de Modernidade. Símbolo que condensava o progresso, pela velocidade e pela aventura, o comboio foi a forma de fazer chegar mercadorias (das mais variadas naturezas) e pessoas (algumas) a lugares longínquos, estreitando a Europa e outros pontos da Terra. Com o tempo o comboio foi perdendo a aura no que respeita aos vectores aludidos – velocidade e aventura, mas, segundo o que penso, não se alterou o magma da civilização que sustentou, logo: chegámos ao fim. Fim que já tinha sido, aliás, cravado à força da incerteza, do medo, da paralisação, durante a pandemia e o encerramento do Mundo que esta proporcionou. Portanto, ainda que os comboios continuem a laborar, já nós nos deveríamos estar a despedir da época contemporânea: o caos preponderante já não é apenas sintoma, mas efectiva laboração num outro equilíbrio de forças mundial.
Conquanto a guerra continue a laborar e lance a humanidade no terror e em nevoeiros da existência, para este tempo intercalar, mas que é o que nos cabe viver, também a arte tem de ser resposta: porque uma obra de arte é sempre dirigida a alguém, assim se agarre. Contrariamente a algumas pessoas que projectam na arte um carácter, digamos, exclusivo, ou seja, marcado pela premissa de que a obra de arte apenas atinge um grupo muito reduzido de seres humanos, digo que a arte é resposta para a humanidade inteira. O que existe, todavia, é um descompasso, ou níveis diferenciados de partida e de chegada: por tal, interessa insistir na questão da atenção. Por outro lado, certamente uma sociedade como a que hoje se alicerça nas massas e na oclusão do indivíduo não proporcionará as condições a priori para que se exerça a atenção, mas isso não obsta o pensamento de que a obra de arte pode atingir qualquer pessoa.
A arte, primeiro que tudo, é emoção fundada na sensação; ora, qualquer ser humano é em potência capaz de sentir e de se emocionar. Ainda: a percepção da obra de arte, como bem explica Mikel Dufrenne, é uma festa que se dá no recato de um interior potencialmente constelado, interior que vem simultaneamente como abrigo e com a aparência de um altar.
(continua)