‘Lá em Cima’, de Hong Sang-soo
DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
Quantas pessoas não conhecemos que passam a vida a falar de um lugar, idealizado, projetado, para se mudarem mais à frente, quando for possível, e por lá ficarem para sempre – destino, meta, objetivo, esperança, sonho, utopia, como lhe queiramos chamar. A derradeira camada da vida terrena: um sítio que nos proponha bem-estar, paz de espírito, serenidade, como uma recompensa por todas as restantes camadas da vida atravessadas, uma espécie de pré-olimpo, de pré-paraíso. Junto ao mar, no campo, na montanha, numa outra cidade, num outro país, num outro continente, variará, por certo. Mas mais do que a concretização dessa almejada mudança para o local idílico, escolhido, creio que o próprio transportar da ideia, dessa ideia, repleta de imagens imaginárias que funcionam como um elemento carburante nas rotinas do quotidiano, pela vida afora, seja mesmo o impacto (positivo) maior na vida dessas pessoas. Viver, para um dia lá chegar, pensando nesse dia todos os dias. Para alguns sul-coreanos esse lugar é a Ilha de Jeju, também conhecida como Ilha dos Deuses, com um mar azul turquesa e paisagens vulcânicas. Em ‘Lá em Cima’ (2022), de Hong Sang-soo, a referência à Ilha de Jeju atravessa o filme, repetida nos seus quatro fragmentos, nas suas quatro camadas de vida.
O pintor que não chegamos a conhecer e que vivia nas águas-furtadas do prédio branco onde se dá todo o filme tenciona mudar-se para a Ilha de Jeju, ouvimos a senhoria (Lee Hyeyoung, atriz que fez de romancista no filme que antecedeu este, aqui ) dizer ao realizador de cinema (o já bem conhecido Kwon Hae-hyo), quando este traz a filha para conhecer a senhoria, que é designer de interiores, e com quem irá trabalhar, isto no primeiro fragmento, na primeira camada da vida no filme. Sabemos depois que a filha do realizador despediu-se e partiu para a Ilha de Jeju, já no segundo fragmento, na segunda camada da vida no filme. Entretanto, é o próprio realizador que manifesta a vontade de mudar-se para a Ilha de Jeju, até porque não precisa de muito para viver, diz ele, que por esta altura habita o penúltimo piso do prédio, juntamente com a dona do restaurante do piso inferior – que conhecera nesse mesmo piso, no fragmento/camada anterior -, já no terceiro fragmento, na terceira camada da vida no filme, precisamente. E é já no último piso, lá em cima, que voltamos a ouvir o realizador – a viver uma relação com outra mulher, uma agente imobiliária – a trazer à liça a Ilha de Jeju, desta feita, evocando, num cinismo desconcertante, o avistamento de Deus no terraço das águas-furtadas, por entre prédios que pintam a paisagem urbana de Seul: “Vai para a Ilha de Jeju e farás 12 filmes”, ouvimo-lo a replicar o mandamento divino.

Ali chegado ao piso mais alto do prédio, a última camada sólida a separá-lo do céu, consubstanciada até naquele apelativo terraço de vistas para o mundo lá fora, o realizador, que noutra camada da vida, em conversa com a dona do restaurante, via na religião uma invenção dos homens para fazer face ao medo – na altura em contraste com a sua crente interlocutora -, parece ele próprio agora apoderado pelo medo da realidade presente, predispondo-se a inventar uma crença divina – perante a namorada agente imobiliária -, tendo o futuro almejado, idílico, como refúgio. Por esta altura, vemo-lo aparentemente mais velho, alguém que não tem feito filmes ultimamente, já voltara a comer carne – fora vegetariano como resposta a uma doença -, e já voltara ao soju, a sua bebida de eleição, depois dos brancos e tintos bebidos nos fragmentos, nas camadas anteriores. Prazeres mundanos, onde os mimos e o sexo com a nova companheira fazem também parte do cardápio, no terraço-sala-de-refeições-aberta e no interior das águas-furtadas. A ida para a Ilha de Jeju e o regresso à realização seguirão de mãos dadas, pelo menos como o tal elemento carburante nas rotinas do quotidiano deste realizador-homem, deste artista-indivíduo, na habitual realidade circular hong sang-soosiana. Uma realidade circular que Sang-soo liga, une, com uma sequência de dois planos: um contre-plongée que nos mostra o prédio branco do exterior, até lá em cima, seguido de um plano do carro dele que chega e volta, sem sair do sítio, da frente do prédio, e de repente retornamos à camada inaugural da vida no filme.