Os Trapaceiros

Pela mão do inimitável Caravaggio, esta obra de arte adquirida pelo Museu de Arte Kimbell, localizado em Fort Worth, Texas, EUA, pertence ao ano de 1594 e trata-se de uma pintura a óleo.

Creio que nesta altura já deve estar claro que, no meu modo de ver, não existe uma única e ultimada forma de aceder à obra de arte, nem esta se afere, quer pelo grau de fidelidade a uma época (pese embora a contenha), quer pela filiação autoral (pese embora traga filamentos óbvios da psique e da mão humanas que derradeiramente se inscrevem no objecto, mas que não o fecham num sistema). Muitas vezes a vida pede-nos uma chance, um precipitar num voo aberto e sem coordenadas estritas; ora, a obra de arte condensa de maneira admirável essa abertura congénita à vida.

No entanto, para os trapaceiros não é assim. E qual a razão para que assim aconteça? Porque para os trapaceiros não existe acaso nem maravilhamento: é tudo uma questão de contas, de bills, muitas bills, é um deve e um haver, também uma premeditação, uma construção e muitas cartas, tanto dadas como jogadas, ou mesmo escritas e passadas de mão em mão com muito cuspo à mistura. É necessário ter cuidado para distinguir a genuinidade da trapaça, para distinguir as marcas digitais que ficam cravadas nas obras de arte. A quem serve o sistema Caravaggio, hoje? Ao mercado na sua acepção mais extrema. E não é ao mercado que me dirijo. Naturalmente, as coisas devem passar de mão em mão, e há sempre alguém que as transporta, mas quem é que diz que temos todos de fazer o mesmo? 

Portanto, aqui os trapaceiros perdem o pé. E, como isso acontece, o que fazem a seguir? Caluniam. Os trapaceiros não conseguem ficar quietos, necessitam de arranjar um estratagema para defender as suas angústias e criar os seus circuitos de mentira generalizada. Então, aparecem-nos eriçados a perguntar, afirmando: vês, vês? Era o que eu te dizia, concluem. E como chegam às suas securitárias defesas? Normalmente, conseguem-no através da dialéctica (é o caminho mais apetecível), mas também da confusão: os trapaceiros fazem inúmeras confusões. Estão a ver ali no quadro de Caravaggio a figura que esconde as cartas atrás das costas? Pois este é um recurso que adoram: esconder coisas nas costas, ou seja, não darem a cara nem o flanco. 

Não dar a cara nem o flanco significa falta de coragem. Estou a falar-vos de quê? Estou a falar-vos da intensa sinceridade da obra de arte, neste caso, “Os Trapaceiros” pintados por Caravaggio.