‘Rasganço’, de Raquel Freire
| DA VAGA DE CASA
Nos meus tempos de estudante universitário – já lá vão uns 20 anos – habituei-me a ver praxes académicas que se prolongavam ao longo de todo um ano letivo; concretamente refiro-me ao infortúnio dos caloiros do curso de LESI (atualmente LEGSI – Licenciatura de Engenharia e Gestão de Sistemas Informáticos) da Universidade do Minho, em Braga. Naqueles invernos, invariavelmente chuvosos, numa altura em que todos os cursos já tinham arrumado a praxe muito antes de acabar o Outono, lá estavam – não todos, porque o que é demais é moléstia – os futuros engenheiros informáticos, praxados e praxantes, debaixo de chuva torrencial, muitas vezes à entrada do campus universitário; os caloiros vestidos à civil, de quatro, ajoelhados ou em outras posições muito pouco ortodoxas; os seniores, orgulhosamente trajados, em pé, simultaneamente como pastores que evangelizam e como pastores que guiam o rebanho. O cúmulo, a aberração da praxe académica, estava ali, omnipresente, de forma quase panfletária para que todos que chegassem e partissem, entrassem e saíssem do campus universitário, pudessem testemunhar em grande plano. Com traços de regime militar, de hierarquias rígidas e inquebráveis, de seguidismo, enraizado em tradições bacocas e anacrónicas, feito de olho por olho, dente por dente (a ti te faço o que me fizeram a mim), a praxe académica exala em todo o seu esplendor o poder e as suas relações. ‘Poder’, é mesmo a última palavra que vemos escrita à faca, com o sangue a substituir a tinta, no peito da última mulher-vítima de ‘Rasganço’ (2001) – a primeira longa-metragem de Raquel Freire. O rasganço – esse ritual muito antigo da Universidade de Coimbra, que culmina no rasgar literal das vestes do ‘recém-doutor’ -, e a praxe académica no seu todo, funcionam como pano de fundo para a expressão de uma realidade de poder, e das sua relações, um poder exercido de várias formas na academia. Parece que Raquel Freire estava já a projetar acontecimentos futuros que, inevitavelmente, saltaram para lá dos muros da(s) Universidade(s): a tragédia do Meco; ou o caso Boaventura de Sousa Santos.
O plano de abertura do filme, que plasma a palavra ‘Rasganço’ a vermelho (de sangue) no ecrã, acompanha num travelling os passos de um homem escadaria acima, até fixar e desembocar num plano geral que nos permite ver o topo, longe, a muitos degraus de distância. Entramos imediatamente no filme e somos desde logo remetidos para a ideia de uma certa inacessibilidade, como uma longa e árdua escada social (agora fala-se mais de elevador) para conseguir-se subir na vida, pelo menos para alguns. O homem que sobe a escadaria da Universidade de Coimbra e que atravessa corredores – sempre acompanhado por sons de batuque, aos quais se junta entretanto o tocar do sino da igreja – é Edgar (Ricardo Aibéo), um não-estudante que veio espreitar o famoso rasganço. O poder de sedução que a vida académica exerce sobre Edgar produzirá, consequentemente, tenebrosas repercussões na narrativa, algo que de certa maneira começamos a antever quando nos deparámos com um grade plano de rosto em que metade é luz e a outra metade é sombra – vi ali um rosto similar ao rosto de Orson Welles, no seu noir ‘O Estrangeiro’ (1946) -, com o olho da face da luz como um vidro a brilhar, de ódio, de raiva, de inveja, isto enquanto os estudantes amigos da namorada universitária (Ana Teresa Carvalhosa) cantam e dançam ao som de ‘Ouvi Dizer’, dos eternos Ornatos Violeta.

Até chegarmos à palavra ‘Poder’ como ultimo escrito da caneta-faca de Edgar nos corpos das mulheres-estudantes, vítimas da sua revanche, observamos, por meio de suaves panorâmicas e/ou de planos gerais, o poder que a Universidade exerce sobre Coimbra, olhando para ela de cima para baixo, no alto da sua colina, tendo a cidade a seus pés. Numa dessas vistas sobre a cidade, a diretora (Isabel Ruth) da Casa Abrigo da Santa Casa da Misericórdia (onde Edgar se refugia), sob tutela da Universidade, declara do alto do seu pedestal o amor a Coimbra, que está lá em baixo, um amor que segue uma linhagem familiar de dedicação à causa pública (à Universidade, leia-se) do pai e do avô. Uma cidade que à noite, no escuro, uma vez mais pelas ternas panorâmicas da câmara e pelos demorados planos gerais, confunde-se com o negro dos trajes académicos, que pintam vigílias, serenatas, festas e farras. Do poder da diretora – vai pondo cunhas para conseguir empregos para o (seu) amante Edgar na Universidade, poder esse que depois é visualmente vertido na postura dos corpos de ambos na intimidade, com Edgar submisso, ao contrário do poder, sádico e violento, que ele expressa com as mulheres-vítimas -, até ao poder do reitor, que põe e dispõe sobre os timings da investigação da PJ perante os sucessivos crimes que vão surgindo.
É já depois de se relacionar com a Universidade por dentro (namora com uma universitária); por cima (é amante da diretora da Casa Abrigo); e por fora (namora também com a rapariga conservadora [Paula Marques], devota a Dom Afonso Henriques, a quem se confessa como quem se confessa a Deus – vemo-la junto ao túmulo do ‘conquistador’ no Mosteiro de Santa Cruz – que Edgar cumpre o seu poder e faz a sua justiça pelas próprias mãos, consubstanciada numa obstinada e premeditada deturpação do direito, depois de ouvir o professor (Luís Miguel Cintra) dizer: “O homem é o fundamento do direito, a justiça a sua estrela polar”; depois de mergulhar na leitura de manuais que usurpou na sala de aulas. É curioso que a imagem de Edgar atrás de umas grades seja ainda antes do primeiro crime, quando fica preso do lado de fora, da Universidade.