‘Berlinguer – A Grande Ambição’, de Andrea Segre
| DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Italiano
Moções de censura e moções de confiança; acordos parlamentares e coligações governamentais; conversações e negociações; aproximações e cedências; governabilidade e crise política; a(s) esquerda(s) e a(s) direita(a); alas mais moderadas e alas mais radicais dentro de um partido; socialismo e capitalismo ou neoliberalismo; a Europa e a NATO; Moscovo e Washington; compromisso e estabilidade. É muito à volta disto que andam, por estas semanas, líderes políticos, em sucessivos debates e comícios, comentadores e jornalistas, reunidos em muitas mesas, e, por arrasto, o povo (português), ou pelo menos parte dele. É também essencialmente em torno disto, naquilo que podemos ver como um paralelismo histórico com os tempos de hoje, com evidentes e naturais nuances de um tempo e de uma geografia diferentes, que gravita ‘Berlinguer – A Grande Ambição’ (2024), de Andrea Segre, filme de abertura da Festa do Cinema Italiano, esta quarta-feira à noite, numa Sala Manoel Oliveira repleta, no Cinema São Jorge. Andrea Segre, de acordo com as suas palavras de ontem após a sessão, queimou pestanas a ler atas do Partido Comunista Italiano (PCI), bem como notas, documentos e discursos de Enrico Berlinguer (secretário-geral e figura emblemática do PCI até à sua morte em 1984, após um comício em Pádua). Na verdade, depois de vermos o filme, constatamos o quanto o cineasta italiano se esforçou para colar, tanto quanto possível, a ficção à realidade, uma realidade eminentemente política, plasmando tal intenção ao alternar com abundância imagens do seu filme com imagens (em movimento) de arquivo – sempre aglomerados de pessoas em momentos marcantes da vida política. Mas também a expressão da essência política de Berlinguer (interpretado por Elio Germano, o Pietro de Confidenza [2024]) na intimidade, em casa com a família – aqui Segre mergulhou no universo privado do político com a ajuda dos filhos -, optando por deixar de parte uma exploração mais pessoal ou intima do pai e marido, que frequentemente resvala para um certo voyeurismo em filmes biográficos. O filme concentra-se na atividade deste homem político – um discípulo de Antonio Gramsci (fundador do PCI, pensador, filósofo, escritor) – num período que vai precisamente desde a morte de Salvador Allende, assassinado num golpe militar chileno, e a morte de Aldo Moro, assassinado pelos terroristas das Brigadas Vermelhas, ou seja, de 1973 a 1978.
Não creio que terá sido inocente ou ao acaso compactar e balizar este período de tempo – de 1973 a 1978 – com a morte de Salvador Allende pelas tropas de Pinochet, o presidente chileno que ganhou eleições e implementou um socialismo democrático inspirador para muitos, e o desaparecimento, feito de rapto e morte, de Aldo Moro, líder histórico da Democracia-cristã (centro-direita), partido dominante na governação italiana pós-fascismo. Allende foi, para Berlinguer, a figura que melhor consubstanciou a práxis política teorizada por Antonio Gramsci – aliás, o filme abre com uma citação de Gramsci que de tão rápida não deu tempo de ler, mas que ao longo do filme teria réplicas em verbalizações de pensamentos e reflexões de Berlinguer e até na imagem do retrato que vemos na parede do gabinete dele – e é a partir da sua vitória e, também da sua morte, que o líder do PCI começa a arquitetar a ideia de um compromisso histórico tendo em vista uma grande ambição. Grande ambição essa que Berlinguer faz ecoar a partir do púlpito do Kremlin, perante centenas de congressistas comunistas e com Brejnev (liderava então a União Soviética) na ‘tribuna’, num discurso em que exalta liberdades e declara total empenho na construção de uma sociedade socialista num grande compromisso com partidos, organizações, sindicatos, num sistema plural e democrático – não será necessário falar sobre o azedume que tais palavras criaram na cúpula soviética em Moscovo. Moro era a figura do outro lado do espectro político – da fação mais social-democrata da Democracia Cristã, em contraponto com Giulio Andreotti, da ala mais liberal do partido – com quem Berlinguer conseguia estabelecer as pontes para o tal compromisso histórico – um governo de forte apoio popular, num acordo que juntasse os dois maiores partidos da década de 70 em Itália – tendo em vista a (sua) grande ambição.

Numa ficção que se confunde e se funde com cinema documental, permitindo-nos conhecer melhor ou revisitar a história peculiar do PCI e da política italiana na década de 70, os momentos em família de Berlinguer, com a mulher e os filhos, acabam mesmo por soar como parêntesis, ainda que q.b., dessa reconstituição histórica que o filme leva a cabo. Ainda que q.b. porque, como já referido no início, Berlinguer continua a ser político nesses momentos privados, esforçando-se por explicar aos filhos, num piquenique doutrinário, a destrinça entre o capitalismo, assente na competitividade, e o comunismo/socialismo, ancorado na colaboração; ou, mais tarde, a necessidade de uma certa realpolitik para obter progressos, mesmo que tal passe por abster-se e deixar passar o governo Andreotti. Andreotti – tão bem retratado em Il Divo (2008), de Paolo Sorrentino; ontem veio-me logo à memória esse filme – que já trilhava caminho para o acelerar do taylorismo e do fordismo à italiana, que o patrão da Fiat, Gianni Agnelli – vemos um excerto de uma entrevista do empresário magnata em que descreve a possibilidade do PCI ser governo como uma grande ameaça -, preconiza, para desalento e revolta da classe operária.
Apesar de não vermos a morte de Berlinguer retratada no filme enquanto narrativa – seria apenas em 1984 -, temos no entanto imagens de arquivo que me remeteram instantaneamente para ‘Funeral de Estado’ (2019), de Sergei Loznitsa – filme que nos mostra as imagens do último adeus do povo a Estaline -, pela dimensão de massa humana e pela consternação bem patente nos rostos. Porém, ao contrário de Estaline, tirânico ditador soviético, Berlinguer, nas palavras de Andrea Segre, não é visto por ninguém em Itália como uma pessoa má, que suscite ódio. E, a escassas semanas que estamos de novas eleições legislativas em Portugal, talvez seja boa ideia Pedro Nuno Santos (Partido Socialista), Mariana Mortágua (Bloco de Esquerda), Paulo Raimundo (Partido Comunista Português) e Rui Tavares (Livre) espreitarem o filme e refletirem sobre que presente e sobre que futuro para a(s) Esquerda(s) – no plural é para alargar o espectro ideológico. E, já agora, qual a grande ambição!