À frente dos olhos

Libertad, de Clara Roquet
| DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

Após seguirmos para o habitual interregno de Verão  à boleia de Aftersun (2022)  – cuja realizadora Charlotte Wells, com a sua única (para já) longa-metragem, foi a escolhida DA VAGA REALIZADOR DO MÊS de Julho -, estamos de volta, ainda a tempo de nos despedirmos do Verão, cabendo à catalã Clara Roquet – tal como Wells uma debutante mais do que promissora – as honras DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, em Setembro. Libertad (2021) [Liberdade], única longa-metragem (por agora, assim esperamos) de Clara Roquet – ela que gosta de se assumir como argumentista e assim tem sido em diversos filmes, como em 10.000 km (2014) e Els dies que viendran (2019), ambos de Carlos Marques-Marcet;  em Creatura (2023), de Elena Martín Gimeno, ou mais recentemente em La virgen rosa (2024), de Paula Ortiz, entre outros -, é um filme de Verão, de mar, de sol, de corpos, de família, de despedidas e de partidas, de liberdade(s). Libertad coloca-nos no seio de uma família catalã que faz férias veraneantes numa faustosa casa de campo e mar na Costa Brava (província de Girona) e confere-nos variados ângulos de observação para nos determos. Digamos que nos faz recordar ‘O Pântano’ (2001) , de Lucrecia Martel, mas menos decadente, mais límpido, com menos bolor, mais airoso. Tal como no filme de Martel, a vida vai seguindo o seu curso, com o ócio e o tédio como frutos do calor de Verão, sem grandes acelerações, ânsias, agitações, sem clímax – injetando elipses para evitá-los – numa dinâmica intergeracional que se vive na casa-de-família; uma dinâmica pintada pela presença de muitos, em que nunca chegamos a saber totalmente quem é quem, e pela coexistência entre patrões e empregados – por conseguinte, estratos sociais distintos. Nota-se que Clara Roquet, à semelhança da compatriota catalã Carla Simón, é uma herdeira distinta do estilo marteliano: reproduzem nos seus filmes muito daquilo que os seus olhos e ouvidos viram, observaram, escutaram, presenciaram, absorveram, como autênticas esponjas, enquanto crianças, adolescentes e jovens nas suas vidas familiares. Em Libertad, como em ‘O Pântano’ ou como em ‘Alcarràs’ (2022) , de Carla Simón, cabe-nos a nós, espectadores, decidir quem queremos ver como protagonista(s) centrais – se é que queremos -, entre crianças, adolescentes, jovens, adultos ou mais velhos.

O que se esconde por detrás da cortina? Assim podemos questionar quando vemos o plano de abertura de Libertad. A câmara demora-se a mostrar-nos a cortina cinzenta feita de movimentos, sombras e ruídos, de lágrimas e suspiros – não do filme de [Ingmar] Bergman, mas mais como um rebuscar da função catalisadora do som no cinema de Martel, e que também é apanágio de Simón, especialmente em ‘Alcarràs’; mais à frente, em Libertaddeparamo-nos com um plano em que vemos a colombiana Rosana (Carol Hurtado), empregada doméstica e cuidadora, e a filha Libertad (Nicolle Garcia) a almoçarem numa mesa estreita de uma cozinha que parece estar enfiada numa cave, onde as janelas têm uma grade-rede que lhes retira qualquer vista, enquanto ouvimos (sem ver) o bater das bolas de ténis e as vozes da família burguesa que se entretém no exterior – de Rosana, a faz-tudo em casa, incluindo o tratar da velha matriarca Ángela (Vicky Peña), que padece de Alzheimer. Rosana puxa a longa cortina e dá-nos a vista desafogada para o verde da vegetação e o azul do mar; vista essa que é preciso tratar, manter e cuidar por dentro, por detrás da cortina, e das longas portas e janelas envidraçadas que se estendem e que obrigam a câmara a encetar uma suave panorâmica para acompanhar todo o movimento das mãos de Rosana. E é também pelas mãos que chegamos à avó e mãe Ángela, é sobre elas que a câmara se detém, antes de lhe vermos o rosto: mãos que ao contrário do cérebro parecem manter intactas as habilidades, para costurar ou para tocar piano.

E é mesmo ao piano que se dá um dos momentos mais ternos do filme, que une a velha Ángela e a jovem Libertad, de 15 anos, recém-chegada da Colômbia para viver com a mãe Rosana, que já não vê desde muito pequena. Sentadas lado a lado ao piano – já depois de as termos visto lado a lado, de costas, sentadas na cama, num silêncio apenas interrompido pela música clássica que Ángela escolhera -, com a câmara colada aos rostos de ambas, especialmente ao de Libertad, observamos enternecidamente aquela aula inusitada. E é a partir desta (não) relação de Ángela e Libertad que vem à tona o peso do argumento para Clara Roquet, distanciando-se aqui de Martel e de Simón. Roquet junta as duas personagens nesses dois momentos, que referi, como preparação de terreno para o desfecho do filme, da história: quando Ángela se levanta da festa que está a decorrer no jardim e parte sozinha – acompanhada de música introduzida pela única vez no filme – rumo à porta aberta que lhe põe a rua à frente dos olhos, e a liberdade que ela busca, liberdade essa que Libertad acaba por lhe consentir, também à frente dos seus olhos. E ao libertar Ángela, Libertad liberta, consequentemente, a mãe Rosana, que deixa de ter a doente de Alzheimer para cuidar e pode seguir caminho com a filha; liberta também a família num todo, que passava os jantares à mesa de jardim a lavar roupa suja sobre responsabilidades em vigiar a matriarca, que sempre que podia tentava esgueirar-se; isto tudo depois de Libertad já ter libertado Nora (Maria Morera) – pois, ainda não falámos dela -, uma espécie de alter-ego da própria Roquet, naquela idade, e é a partir dela, dos olhos dela, do olhar dela, que a câmara amiudadas vezes se coloca, como a câmara de Carla Simón fez com a pequena Frida em ‘Verão 1993’ (2017) .  E com a chegada de Libertad, Nora, sensivelmente da mesma idade, descobre todo um admirável mundo novo, que apenas imaginava, entre passeios na cidade – e como lembra ‘O Pântano’, uma vez mais, com aquelas lojas, com aquelas ruas -; saídas à socapa para a discoteca; mergulhos noturnos; fugas em motas. Libertad e Nora entrelaçadas uma na outra por cabelos de Rapunzel ou como pequenas-sereias nas rochas de mar azul-turquesa, com os corpos entregues ao sol, numa intensa cumplicidade de adolescentes num Verão, assim as vemos.

O relevo do argumento e um naturalismo não tão espelhado, digamos, distinguem Clara Roquet de Lucrecia Martel e de Carla Simón, mas não o suficiente para deixar de poder formar uma tríade muito própria com elas, pelo menos aos meus olhos.

Libertad, de Clara Roquet (2021)
Visionado em Filmin Portugal