‘O Deserto Vermelho’, de Michelangelo Antonioni
| DA VAGA DE CASA
Foi um Verão de muitos, bons e saudosos filmes italianos; este Verão que (já) passou. Particularmente em Lisboa, especificamente no Cinema Nimas com o ciclo ‘Os Anos de Ouro do Cinema Italiano’ – arrancou a 31 de Julho e prolongar-se-á pelo menos até 01 de Outubro. Diria que a minha maior descoberta neste ciclo foi o cinema de Luigi Comencini e a sua catastrófica viagem rumo a Roma em ‘O Grande Engarrafamento’ (1979): a humanidade – ou a falta da mesma – à flor da pele; a disposição para a animalidade kantiana expressa com as idiossincrasias transalpinas; cada carro como uma casa com vizinhos pendurados às janelas e o asfalto a servir de palco para as vidas se exibirem. E por falar em descobertas, fui também em busca de Antonionis ainda desconhecidos para mim e lá fui parar a ‘Deserto de Almas’ (1970), deambulando e rebolando pelo Death Valley [Vale da Morte], na Califórnia, um tanto ou quanto perdido, como o próprio Michelangelo Antonioni nesta incursão na América, diria. Depois desse filme, reencontro-me com Antonioni na FLIFA (Festa do Livro Independente da Freguesia de Arroios) através do livro ‘Filmes na Gaveta’ (Edições 70) – e, em sequência, volto ao Nimas para reacender a luz antonioniana, revendo ‘O Eclipse’ (1962); o final desta minha sequência desaguaria em rever ‘O Deserto Vermelho’ (1964) – desta feita em casa, por incompatibilidade de agenda com a exibição no Nimas -, o mais belo de todos os filmes de Antonioni; um dos mais belos de todos os filmes alguma vez feitos. “Olhar para dentro do homem a quem roubaram a bicicleta [alusão ao clássico ‘Ladrões de Bicicletas’ (1948), de Vittorio De Sicca, filme-ícone do neo-realismo] e ver quais são os seus pensamentos, como se adequam, quanto ficou dentro dele de todas as experiências passadas”, expressou ao mundo Antonioni, apontando a uma refundação do neo-realismo no seu cinema, especialmente a partir de ‘O Grito’ (1957). Em ‘O Deserto Vermelho’, fazendo uso da cor pela primeira vez no seu cinema, Antonioni aprofunda, mais intensamente, a harmonia, a simbiose, a fusão – já trabalhadas e bem expressas em ‘O Grito’, ‘A Aventura’ (1960), ‘A Noite (1961), e ‘0 Eclipse’ – entre personagens (com mais enfoque num protagonista) e paisagens. Mas, em ‘O Deserto Vermelho’, já não é só o estado de alma e a decorrente alienação sentimental ou emocional da protagonista (a soberba Monica Vitti) que se correlaciona com a paisagem, é também a psique, a mente nas suas profundezas a experienciar uma constante afetação sensorial.
Ao explorar e exponenciar as cores na paisagem, tingindo-a, inclusive – muito vermelho, muito azul, muito verde, algum violeta, algum amarelo -, Antonioni manipula, no melhor sentido do termo, a reverberação feita de reciprocidade entre a arquitetura industrial, maquinal, que vamos observando e por onde se vai dando a mise-en-scène, e a complexa neurose que Giuliana (Monica Vitti) vai exprimindo. E o génio de Antonioni ainda vai mais além ao decidir estender e fundir, de certo modo, a paisagem industrial (feita de fábricas, gruas, guindastes, turbinas, chaminés) com a paisagem natural: as nuvens de fumo espesso exalado pelas fábricas unem-se e confundem-se com a neblina e o consequente nevoeiro que cobre o céu; o estaleiro naval e os navios cargueiros levam a indústria ao mar e vice-versa, incluindo na emissão de resíduos que poluem a água, bem como a terra circundante, negra de petróleo. Se atentarmos à sequência de abertura do filme, onde surgirão a negro carregado os créditos, observamos desde logo essa diluição entre paisagens: industrial e natural. Nesta correlação entre a paisagem e Giuliana, em que uma se alimenta da outra, as vistas ficam muitas vezes turvas, as imagens tornam-se baças, desfocadas, pelo fumo, pelo nevoeiro, pelo olhar dela. Num curto espaço de tempo conseguimos observar diferentes momentos dessas visões embaçadas, fruto da tríade simbiótica composta por paisagem industrial, paisagem natural e a mente de Giuliana (uma tríade que se interliga também pelos sons – dos ruídos constantes, dos alternados e dos esporádicos que ecoam das fábricas, da composição de música eletrónica introduzida em momentos de picos neuróticos de Giuliana, como que a ressoar de dentro da sua mente, ou do sinal sonoro dos navios que chegam e partem do porto): quando Giuliana está em triângulo com o negligente marido, Ugo (Carlo Chionetti), e o atencioso pretendente, Corrado (Richard Harris), junto à água, antes de rumarem ao encontro com outros amigos; em seguida, já na cabana, azul por fora e com vermelho por dentro, à beira-mar, em que ela a uma certa altura olha de frente para os restantes cinco convivas ali espojados num colchão dentro daquele espaço exíguo – em ambiente de pré-orgia que não chega a dar-se – e a câmara parte da sua nuca mostrando o desfoque total dos rostos e corpos, sobressaindo apenas a parede de tábua vermelha; e, por fim, já fora da cabana, com o nevoeiro a intensificar-se, ao ponto de engolir os corpos dos outros, novamente de frente para Giuliana.
Talvez só depois de chegarmos ao final do filme, ou perto de, mais precisamente àquele momento no quarto de hotel em que Giuliana busca cura – sim, aquele corredor tão enfaticamente branco remete para hospital psiquiátrico; isto depois de passar pelo rececionista cujo rosto também está desfocado, quando de frente para o rosto de Giuliana capturado pelo cabelo desgrenhado – junto de Corrado e materializam-se as alucinações, pintadas de púrpura e rosa, só aqui, neste momento, é que nos lembramos que lá atrás, na paisagem nebulosa e cinzenta junto ao lago onde Corrado e Giuliana falam de valores políticos, humanistas e morais, vimos uma árvore, despida, feita apenas de tronco e galhos sem folhas, com cor púrpura, inusitadamente – manipulação cromática de Antonioni. “Sinto-me a afundar”, ouvimos Giuliana dizer ao marido durante uma insónia em que sai do quarto – a casa fica junto a um porto / estaleiro naval – e circula numa área em que o azul preenche paredes e grades, em sintonia com o mar e os navios que quase lhe entram pela exígua janela.

Mas a mestria de Antonioni encontra absoluta correspondência em Monica Vitti. O controlo de que ela faz uso para exprimir o descontrolo da personagem é verdadeiramente singular, elevando-a a um pedestal neurótico por onde circulam Liv Ullman, nos filmes de Ingmar Bergman, e Gena Rowlands, com John Cassavetes. Se em Ullman cabe essencialmente ao rosto toda a expressividade emocional, se em Rowlands é pela fisicalidade improvisada, feita de pouca ortodoxia, que as emoções desabrocham, já em Vitti, é pela forma como o seu corpo serpenteia, desliza, escorrega pelas paredes, pelos cantos, pelos corrimãos, pelos corpos, sem nunca cair, sem de despedaçar, mantendo sempre um certo equilíbrio entre controlo e descontrolo, loucura e sanidade, integração e desintegração, isto pela corporalidade que consegue desenvolver.
E quanto ao neo-realismo clássico de que falámos no início, digamos que se manifesta quase colateralmente, em laivos, longe de ser o epicentro. A multidão de operários em greve na abertura do filme; a reunião com operários que são abordados para trabalharem na América Latina; ou até o contraste entre a operacionalidade sexual do trabalhador (que olha de cima para baixo) de um patrão amigo do casal Ugo-Giuliana – o tal que pula em cima de uma fábrica falida como de uma mulher em crise, de acordo com uma outra amiga naquela não-orgia (os não-acontecimentos também são acontecimentos) – em contraste com a divagação e devaneio daqueles patrões burgueses que se enrolam e desenrolam entre conversas, ovos de codornizes para atiçar o desejo e copos (a lembrar aqui também ‘A Noite’, na festa de alta burguesia em casa dos Gheradini), são disso exemplos.