Les habitants, de Maureen Fazendeiro
| DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Francês
News from Home (1976), de Chantal Akerman – foi para aqui que fui transportado esta tarde, no São Jorge (DA VAGA DE SALA – Especial Doclisboa), enquanto via Les habitants (2025), de Maureen Fazendeiro, a realizadora portuguesa que cresceu em França mas que vive em Lisboa de há uns anos a esta parte. Da mesma forma que em News from Home ouvimos a própria Akerman ler as sucessivas cartas que a mãe lhe envia de Bruxelas para Nova Iorque, assim escutamos Maureen Fazendeiro dar voz-off à correspondência que a mãe lhe faz chegar desde Périgny-sur-Yerres, onde vive, uma terra nos subúrbios de Paris, até Lisboa; como em News from Home, apenas as cartas enviadas pela mãe são lidas, nunca ouvimos as repostas da filha; o idioma é o francês em ambos os filmes; a pronúncia, a cadência, o ritmo e o timbre que se soltam pelas vozes de Maureen e de Akerman soam incrivelmente semelhantes; quer num filme quer no outro, as vozes das duas realizadoras são as únicas que ecoam; e vamos ouvindo as vozes delas por cima de imagens com vida própria, que não são reféns das palavras ditas, pelo menos na literalidade e no momentâneo, imagens que desabrocham das paisagens – a urbana em News from Home, a bucólica em Les habitants – colhidas ora pelo movimento das câmaras de ambas, em travellings de carro e em panorâmicas, ora pela fixação das mesmas (dsa câmaras), que nos submetem a um jogo permanente de associação e dissociação, de construção e desconstrução, de imagens mentais a partir dessa mescla entre o que nos entra pelos olhos e o que nos entra pelos ouvidos. Se Marguerite Duras visse Les habitants de Maureen Fazendeiro estou certo de que o incluiria junto daqueles filmes – os dela segundo a própria- em que 80% tem de ser construído pelo(s) espectador(es).
Aquela suave, terna e prolongada panorâmica de 360 graus com que Maureen abre o filme serve precisamente para isso: abrir o filme, na profundidade maior que possamos conceder aqui ao verbo abrir; há uma condensação do espírito do filme naquele plano de cerca de dois minutos; uma panorâmica que contorna o verde da horta e das árvores, fundido em camadas harmoniosas, com as casas ao longe – ao som do vento que sacode, primeiro, e da voz de Maureen, depois – e que vai desaguar, até parar, com vista para a senhora que trata, cuida, da vegetação em volta da cerca – a mãe da realizadora, que aliás ficamos a conhecer hoje no meio da plateia que assistia ao filme. Os relatos que vamos ouvindo na leitura das cartas desembocam invariavelmente no contacto que a mãe, com outras amigas, vai desenvolvendo junto a uma comunidade cigana que se instalou recentemente num terreno descampado, nomeadamente o auxílio que vão prestando para suprir as muitas carências, mas também, em simultâneo, o reverberar consequente de agradecimento, cordialidade, simpatia, abertura e até hospitalidade por banda dos membros daquela comunidade oriunda da Roménia. Sensibilidade de quem é solidária e que cuida do próximo como quem arranja as flores e compõe um bouquet de rosas, como aquele que vamos vendo nas imagens; flores que crescem nas estufas – também vemos espalharem-se ao longo da estrada em travellings laterais – mas que alguém tem de cuidar delas. Mas vemos também um certo atrito entre o vazio que se estende pelas ruas, onde o carteiro e os homens do lixo arrastam as indispensáveis rotinas, e a natureza que se apresenta resplandecente, ao som do vento e do chilrear dos passarinhos. Em boa verdade, cabe à natureza hospedar aquela comunidade cigana que não vemos, coadjuvada apenas por parcas almas resistentes.

E com o avançar das leituras, com muitas repetições na descrição dos atos e dos momentos da mãe com as pessoas no acampamento – assim é o quotidiano, inundado de repetições que emanam das rotinas -, a história do filme repete também a história de vida imposta aos ciganos, e a partida após expulsão é o seguimento previsível; não o final, porque o final tem muita estrada para andar – Maureen coloca-nos dentro do carro no lusco-fusco da madrugada, assim parece, e num travelling para a frente faz-nos seguir viagem, já na autoestrada, em busca de um renascer, porque amanhã será um lindo dia (como canta Caetano Veloso). Será mesmo?
De dizer que Maureen Fazendeiro terá em exibição, no próximo Doclisboa, ‘As Estações’ (2025), longa-metragem filmada no Alentejo, e a expetativa é grande. Lá estaremos para ver e aqui para escrever.