‘O Sonho de Julie’, de Leonardo Van Dijl
| DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
Foi na final do Us Open de 2018 que vi jogar pela primeira vez Naomi Osaka. Malogradamente vi também a minha atleta-referência de toda a história do desporto feminino, a campeoníssima Serena Williams, ser derrotada nesse encontro decisivo do certame nova-iorquino. Serena, então com 36 anos, estava de volta após ter sido mãe e preparava-se para igualar a recordista Margaret Court em títulos do Grand Slam – 24, no total -, porém, do outro lado da rede, com tenros 20 anos e ainda sem qualquer major no palmarés, surgia uma japonesa (filha de pai haitiano e mãe nipónica), com feições peculiares, pronta para mudar o destino da história. Osaka ganhou o seu primeiro torneio do Grand Slam; Williams perdeu definitivamente – já se retirou entretanto – a oportunidade de ficar a par de Court – já octogenária – como a mais titulada de sempre. Na cerimónia final de entrega de prémios, lembro-me perfeitamente de toda a emoção – incluindo o abarrotado Arthur Ashe Stadium -, e de todas as atenções, em torno de Serena Williams, que fez um longo discurso, enquanto a nova campeã, Naomi Osaka, pairava por ali como alguém que só veio estragar a festa, ainda para mais uma festa anunciada. Naquele momento pensei para mim que estava a assistir a uma inesperada passagem de testemunho, a tímida e introvertida japonesa seria a nova princesa do ténis mundial e, automaticamente, vislumbrei um percurso de conquistas que poderia pelo menos aproximá-la do impacto que Serena emprestou ao ténis feminino e ao desporto universal durante duas décadas. Volvidos oito anos desde essa memorável noite, Osaka somou ‘apenas’ mais três títulos do Grand Slam, o último dos quais no já longínquo Australian Open de 2021. Com a mesma coragem com que derrotou a enorme Serena Williams naquela final em 2018, Naomi Osaka contou ao mundo que estava na hora de se afastar por algum tempo para tratar da sua saúde mental – vítima de depressão e de crises de ansiedade. ‘O Silêncio de Julie’ (2024), primeira longa-metragem do belga Leonardo Van Dijl – escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS para Outubro -, é também fruto dessa consciência social de Naomi Osaka enquanto responsável da produtora (Hana Kuma) deste filme.
Incluindo no argumento um suicídio de uma jovem tenista – não da personagem central -, como pano de fundo, e ainda o assédio em formas variadas de um treinador, seria previsível e até expectável que o filme resvalasse para uma torrente de emoções, alavancadas por banda sonora, choro, gritos, perseguições, reviravoltas; mas não, pelo contrário, ‘O Silêncio de Julie’ mantém-se seguro, sóbrio e enxuto do início ao fim. Acima de tudo, a câmara de Leonardo Van Dijl apela a uma clara tomada de consciência do espectador: focando-se e fixando-se em Julie (Tessa Van den Broeck), a jovem tenista-prodígio de um clube de ténis na Bélgica, e no espaço físico concreto em que ela se move, concretamente o seu rotineiro habitat – court de ténis, ginásio, escola, quarto. Parece mesmo que Van Dijl só quer que nos detenhamos em Julie e que fiquemos com ela no seu espaço físico. Quando surgem à volta outras jogadoras no treino, ou funcionários do clube, ou colegas de turma na escola, a profundidade de campo é reduzida de tal forma que esses rostos ficam desfocados, embaçados, não nos permitindo evasões, ou seja, largarmos o rosto, e o corpo, de Julie. Introspetiva, na sua cristalizada solidão, é provável que aos olhos de Julie os rostos em volta dela percam também alguma definição e nitidez. Quando Julie está ‘sozinha’ no espaço físico, a câmara estaciona e demora-se, mesmo até quando Julie sai fora-de-campo [sai do enquadramento, não do campo de ténis] – e vemos isso logo no plano inaugural -, seja quando sobe à rede do court durante o treino, seja quando se levanta da secretária no quarto, durante alguns instantes não vemos Julie porque a câmara não sai do sítio para seguir-lhe o movimento – essa imobilidade convida à tomada de consciência. Também as repetições das tarefas reforçam a nossa necessária tomada de consciência – ainda assim está bem longe da obsessão singular do cinema da compatriota belga Chantal Akerman – e amiudadas vezes ficamos ali, e fazemos companhia à solitária Julie no court de ténis, enquanto treina desalmadamente o serviço, e não vemos o outro lado do court que recebe fortes pancadas (das bolas); ou no ginásio, onde até podemos ficar a contar o número de agachamentos ou flexões que ela vai fazendo.

A narrativa do filme arranca já no pós-suicídio de uma rapariga do clube de ténis onde Julie treina, cujo treinador é o mesmo das duas. Após o sucedido, o clube decidiu suspender temporariamente o técnico – viria depois a ser afastado em definitivo – e Julie ficou órfã do seu mentor, alguém que lhe ensinou a psicologia do ténis: controlar as emoções e esconder do adversário os pontos fracos. Esse impacto deixado na mente de Julie pelo treinador – com quem ela vai mantendo conversas, pessoalmente e ao telefone – incrustou-se nela e reverbera na forma como criou um escudo protetor à sua volta para se defender, assente em solidão e silêncio. Todavia, o peso daquele acontecimento trágico, bem como a distância que o tempo vai reforçando em relação ao seu agora ex. treinador, são gatilhos para Julie refletir, respirar. Uma conversa telefónica com o antigo treinador, onde descortinamos as ondas manipuladoras de um assédio moral que ele vai exercendo sobre ela, e onde Julie, deitada na cama com o telefone em alta voz em cima dela, se limita e a anuir, culmina no seu fechar de olhos, aparentemente também de ouvidos, naquele que foi o primeiro momento de música (introduzida) no filme – uma sonoridade (a cargo de Caroline Shaw) que parece vir das entranhas e que busca libertação. Mais à frente, em outras duas ocasiões, a mesma composição sonora volta, acompanhando, e sinalizando, a lenta e progressiva libertação de Julie – sublime, a música ao serviço do filme e não o contrário. Magistral também a sombra que cobre o rosto do antigo treinador quando este se encontra com Julie para conversarem pessoalmente, nunca o vemos claramente naquela conversa, a luz está no rosto de Julie. E quando ele lhe diz que parou quando ela disse para parar, algures no passado, a sombra toma contornos negros. Assédio sexual a juntar aos restantes.
E quando Julie se afasta efetivamente do tóxico mentor, o filme resiste afirmativamente à tentação de suscitar perigo, revanche, ajuste de contas, ou mesmo pronunciadamente essa sensação. Parece até que Van Dijl, jovem realizador de 34 anos, quer mostrar-nos que podia ter ido por aí, mas que não quis mesmo ir por aí: quando Julie faz um jogging noturno e o som é cortado ou quando Julie vai abrir a porta de casa no dia de comemoração do seu apuramento competitivo.