Entregue à justiça divina

‘Misericórdia’, de Alain Guiraudie |
DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Francês

Já por algumas vezes escrevi neste espaço sobre o cunho identitário bem vincado de determinados cineastas, que ressoa de filme para filme, expressando-se em cenas que (quase) se repetem, personagens que se confundem, histórias que se cruzam, cenários que se assemelham, temas que se tocam – enfim, os déjà vu que escorrem por entre as obras. Yasujiro Ozu, Aki Kaurismaki, Michelangelo Antonioni, Lucrecia Martel ou Asghar Farhadi  são alguns dos expoentes máximos desse convicto ADN que não teme repetição ou lugares comuns. Ao ver hoje ‘Misericórdia’ (2024), de Alain Guiraudie  (arranque do DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Francês), dei por mim a entrelaçar este filme como o seu anterior ‘Um Herói Anónimo’ (2022).  Não, o cineasta francês não está nem perto do pedestal em que coloco os nomes maiores que citei acima, mas, tendo cada vez mais a acreditar que quem verte pelos seus filmes um cunho identitário tão frontal, e tão vincado, é alguém que tem uma visão muito própria do mundo e a coragem artística para lhe dar corpo. Não conhecendo, ainda, os outros filmes anteriores de Guiraudie, bastaram ‘Misericórdia‘ e ‘Um Herói Anónimo’ para ligar cenas de homens solitários que têm armas em casa; para identificar semelhanças nos padrões de comportamento obsessivo dos protagonistas centrais (o homem de ‘Misericórdia’   e o homem de Um Herói Anónimo’); para observar histórias parecidas, em que o homem central de cada um dos filmes julga ou acredita estar apaixonado por uma mulher mais velha, tendo de lidar com a ameaça violenta de outros dois homens ‘protetores’; para conectar cenários, ou paisagens, com os protagonistas, na aldeia caminha-se (passeios pelos bosques), na cidade corre-se (jogging pelas avenidas), na aldeia bebe-se o tradicional  pastis,  na cidade é mais cerveja; para testemunhar temas que tocam a religião, ou as religiões, de uma certa impunidade que a igreja católica goza no encobrimento de crimes até à islamofobia, feita de ignorância e preconceito.

E mais. Nos dois filmes há um forte traço caricatural que extravasa das personagens, que se manifesta em relações pouco ortodoxas entre pretendentes, familiares, amigos, conhecidos, vizinhos, até com a polícia; relações feitas mais de desencontros do que de encontros, confundidas e baralhadas por terceiros, ou quartos, ou quintos, conseguindo, por meio do absurdo, do ridículo e de um certo nonsense, pôr-nos a refletir, não no sentido de entendermos o argumento, mas sim de seguirmos a construir o filme com a nossa perspetiva crítica – de cada um -, assente em valores morais, culturais e sociais e, de certo modo, na nossa visão do mundo (de hoje). E ainda dá para soltar umas boas gargalhadas pelo meio – assim foi na Sala 3 do São Jorge.

Jérémie (Félix Kysil)  está de regresso à terra onde cresceu, na pequena e desertificada Saint-Martial, para o funeral do seu antigo patrão na padaria/pastelaria daquela povoação. Abarcando todos os créditos iniciais, Guiraudie   estende o travelling para a frente à boleia do carro conduzido por Jérémie – vem de Toulouse, onde vive -, demoramos até conhecer o rosto do protagonista, olhamos pelo para-brisas como olha Jérémie, estrada fora, por entre a natureza, vales e montanhas. Quando muda o plano, mas ainda em travelling dianteiro (à la Hitchcock   em Vertigo [1958]), as curvas substituem as retas, a sinuosidade intensifica-se com a aproximação a Saint-Martial – prenúncio do que virá, nada será retilíneo, linear, coerente –  e além do motor do carro ouvimos também uma composição musical que parece ecoar sons dos sinos de igreja – quiçá outro prenúncio, a sinalização sonora do poder eclesiástico naquele meio rural, como em muitos outros. Pouco depois, no funeral, o abade Philippe (Jacques Develay) estende o prenúncio ao recordar aos presentes que a morte faz parte da vida e que esta é apenas uma passagem para o reino do amor. A relativização da morte será propagada outras vezes pelo abade a Jérémie, quer naquele delicioso momento de contra-confissão – o abade inverte os papéis no confessionário da igreja e ‘confessa-se’ perante Jérémie, contudo, na verdade, toma o lugar de juiz divino e faz do seu interlocutor o réu, pondo e dispondo do seu destino -, quer quando no precipício montanhoso resgata Jérémie do limbo.

Com o avançar do filme, Guiraudie   vai despindo as personagens, numa engenhosa combinação entre o literal e o simbólico. Jérémie despe-se em casa do amigo solitário, onde emborca pastis em catadupa, para tentar seduzi-lo sexualmente e assim libertar – ou mesmo libertarem os dois – a homossexualidade (ou bissexualidade) reprimida. Na casa da viúva Martine (Catherine Frot), onde Jérémie tem estendido a estadia, vemos o homem em nudez integral enquanto se esfrega no banho de modo livrar-se de vestígios de sangue e morte, entretanto a viúva hospitaleira entra na casa de banho e perante a nudez dele age com a naturalidade de uma esposa. Por fim, a nudez do abade –  ou a igreja católica totalmente despida – na cama com Jérémie, revela que valores mais altos e firmes se levantam quando se trata de fazer valer a justiça divina, em detrimento da justiça dos homens, ali preconizada pela polícia. Provavelmente  imbuída por valores idênticos aos do abade, Martine faz ouvidos moucos ao tilintar da pá – se nós, espectadores, conseguimos ouvir… – que escava no escuro do cemitério. Consciência, peso de consciência, todos nós lidamos com isso de alguma maneira, diz a certa altura o abade. Pois bem, uma cama com companhia parece ser mesmo o melhor remédio para todos.

Misericorde,  de Alain Guiraudie (2024)
Visionado na Festa do Cinema Francês, no Cinema São Jorge