Rumo ao sol que se afasta no horizonte

With Hasan in Gaza, de Kamal Aljafari
| DA VAGA DE SALA – Especial Doclisboa

Paciência. Foi o que faltou a muitos espectadores ontem à noite na Sala Manoel Oliveira, no Cinema São Jorge, na sessão de abertura do Doclisboa’25. Primeiro, faltou paciência durante as intervenções dos programadores do festival que se esforçavam, e se desdobravam em diferentes idiomas, para explanarem as visões implícitas de uma viagem de mais de 200 filmes ao longo dos próximos dez dias, com tremenda deselegância, alguns espectadores forçavam aplausos a meio dos discursos, de modo a calar a voz de quem falava, até que a programadora Cíntia Gil fez uso da palavra para lembrar aos desordeiros que por detrás de um festival de cinema há pessoas que trabalham e que merecem respeito, e que aquilo não era – nem tem de ser – um momento instantâneo para o Instagram; bravo Cíntia! Depois, já com a projeção em curso, a impaciência, agora com o filme, ter-se-á convertido em várias saídas precoces de espectadores, ainda assim, uma minoria numa Sala a abarrotar pelas costuras. Paciência é o que não faltou ao realizador palestiniano Kamal Aljafari, em With Hasan in Gaza (2025), enquanto procurava o seu amigo e antigo colega de prisão, de norte a sul. Paciência é o que não pôde faltar a Kamal Aljafari nas celas escuras e sobrelotadas das prisões israelitas. Paciência é o que não tem faltado ao povo palestiniano para resistir, e continuar a resistir.

É a fundo negro que começa e acaba With Hasan in Gaza. Em cima do negro surgem dizeres que a tradução nos descodifica: a busca pelo amigo com quem partilhou prisão e cujo paradeiro desconhece, pelas ruas de Gaza em 2001, no início; o testemunho de quem viveu o que vive um palestiniano numa prisão em Israel, no final. “É um filme sobre a catástrofe e a poesia que resiste”, disse Kamal Aljafari a propósito deste filme que agora ganhou vida, mais de 20 anos depois de imagens recolhidas numa câmara que o próprio foi segurando à mão, de modo turbulento, oscilante, brusco, mas com muita paciência, Gaza afora – metáfora daquilo que é o modus vivendi palestiniano. Acrescentaria à catástrofe e à poesia o horrendo e a esperança. Na verdade, With Hasan in Gaza vai alternando entre essas dimensões contrastantes, ora a catástrofe e o horrendo, ora a poesia e a esperança. Voltando ao fundo negro inicial, o som que ouvimos, a ressoar frieza mecânica, vira entretanto melodia, como quem vê a luz depois de viver no escuro.

É então assente nessa alternância de camadas da realidade que a Gaza do início do século nos vai entrando em movimento pelos olhos: travellings para a frente a alternarem com travellings laterais no carro que nos conduz juntamente com Kamal e Hasan (o anfitrião nesta viagem); mas também a câmara como um corpo ambulante quando caminham pelas ruas e becos; e ainda a câmara como poiso quando é tempo de esperar, observar e captar a dolorosa normalidade. Das ruas apinhadas de gente, ora fazendo de estrada para os carros, ora como mercados, a vida dá-se e as vidas entrecruzam-se em ebulição; a coisa acalma no mar, logo depois, onde o som agora pertence-lhe e a câmara de Kamal dá-lhe expressão, aponta para as ondas de espuma branca; na praia aos miúdos brincam com um peixe ainda vivo que não querem deixar morrer, isto enquanto suplicam por uma foto, um retrato, uma súplica sempre feita de largos e genuínos sorrisos ao longo de todo o filme. Mas depois da bonança também vem a tempestade, e da calmaria do mar viajamos até aos escombros, e vemos Hasan caminhar por entre destroços para ir falar com habitantes cujas casas têm sido atingidas pelas forças israelitas – para os mais distraídos, ou mais cínicos, isto foi 22 anos antes do 7 de Outubro de 2023 – e a câmara amadora de Kamal parece virar pro quando desliza pelos prédios para nos mostrar o lastro marcante do belicismo opositor. Há quem não queira ser filmado, percebe-se o receio, mas Kamal e Hasan – longe ainda de imaginarem – dizem que as imagens não serão transmitidas; volvidas mais de duas décadas aqueles rostos, se ainda viverem, já não serão reconhecidos. Por entre aquele aglomerado populacional, as mulheres são as mais veementes e agora a voz é delas: perguntam como se pode viver assim. A raiva e a dor destas mulheres é apenas atenuada pelos sorrisos das crianças que poisam insistentemente para a câmara.

Seguindo a alternância entre catástrofe e poesia, horrendo e esperança, voltamos ao carro e seguimos, agora, em direção ao sol alaranjado que se irá pôr lá no horizonte. Naquele que é o auge poético do filme, começa a ecoar a música que canta e conta o amor: “Amo-te; tu és os meus olhos; os teus olhos são como o sol; voltemos atrás no tempo, sem fogo e ódio a separar as nossas mãos entrelaçadas”. Ouvimos enquanto procuramos os raios de sol, ora pelo para-brisas ora pela janela lateral, mas o sol, esse, parece estar cada vez mais distante, o caminho até ele não é fácil, direto, nem linear. Sabemos. E com a noite voltamos à catástrofe. Kamal quase que poisa a câmara, ao longe e ao alto na janela da casa de Hassan, para filmar a guerra em direto. Morteiros de um lado e resposta do outro. Uns são de som agudo outros de som grave, diz Hasan, reconhecendo pelo ruído a proveniência de cada um: se é da Palestina ou se é de Israel.

Quando a guerra é a normalidade, todos os sentidos são apurados.

With Hasan in Gaza, de Kamal Aljafari (2025)
Visionado no Doclisboa,  no  Cinema São Jorge