Le Rendez-Vous de L’été, de Valentine Cadic
| DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Francês
Tenho um fascínio particular pelos filmes que acabam mais ou menos como começaram: são atos de coragem artística. Refiro-me essencialmente à resistência de uma certa linearidade em detrimento de um desaguar final, como uma espécie de desígnio anunciado, em extraordinárias e espetaculares transformações ou reviravoltas, quer nas histórias quer nas personagens. Julgo que também tenha sido isso que me levou ao encanto pelo cinema de Éric Rohmer. Na verdade, são muitos os filmes do cineasta francês que se ancoram nesta resistência, bem vertida nos finais dos seus protagonistas, apesar das muitas contradições e incoerências que vão manifestando – mais verbalizando do que materializando. Em ‘O Amor às 3 da Tarde’ (1972) , o protagonista renuncia à tentação final e larga a aventura das tardes parisienses para voltar para a esposa, em casa, no subúrbios da capital, precisamente de onde tinha começado a história; em ‘Noites de Lua Cheia’ (1984) , a protagonista, apesar de no início do filme estar a viver (des)iludida com o namorado nos subúrbios de Paris, nunca largou o seu pequeno estúdio na cidade-luz, para se manter liga ao “centro do mundo”, e é para lá que regressa; em ‘Pauline na Praia’ (1983), as duas protagonistas, tia e sobrinha, regressam sozinhas no final – a Paris -, tal como começaram, após amores, desejos, encontros e desencontros de férias de Verão nas praias da Bretanha; em ‘O Conto de Primavera’ (1990), a protagonista resiste aos sortilégios que o o acaso vai provocando e termina como começa, solitária; podíamos ainda citar outros filmes de Rohmer. E, afinal, porque falamos de Rohmer antes de nos debruçarmos em Le Rendez-Vous de L’été (2025) [O encontro do Verão], de Valentine Cadic, estreante em longas-metragens (DA VAGA DE SALA – Especial Festa do Cinema Francês, este domingo no São Jorge)?
Diria que por três razões: porque li a referência a Rohmer associada a este filme algures; porque é um filme que remete para encontros de Verão e em Paris; e porque, efetivamente, Le Rendez-Vous de L’été partilha esse espírito rohmeriano de salvaguardar e defender a linearidade perante presumíveis transmutações. E quanto a comparações com Rohmer, fiquemo-nos por aqui. Até porque Valentine Cadic parece tudo ter feito para se afastar e fugir de clichés associados a rendez-vous [encontros] em Paris, seja em forma de paixões, de romances, de amores, de desejos ou de traições; diria que fugiu tanto desses clichés que acabou até por se esconder, abusando da reserva, opacidade, secundarização e distanciamento que a atriz e personagem com o mesmo nome conseguiu emprestar. Todavia, Blandine [Madec] estaria disposta a oferecer muito mais do que aquilo que emprestou.

Um tanto ou quanto apardalada, desengonçada, desajustada, perdida, assim começamos a ver Blandine com a sua grande mochila às costas a partir de um zoom in com foco no Arco do Triunfo. Acaba de chegar a Paris, oriunda de uma terra na Normandia, para fazer dois em um: aproveitar o bilhete que tinha comprado para assistir na companhia da namorada, agora ‘ex’, à prova de natação dos Jogos Olímpicos (JO)’2024 e, também, marcar presença na festa de aniversário da sobrinha que faz 8 anos – e que ela ainda não conhece -, filha da meia-irmã Julie (a bem conhecida India Hair), quem não vê há vários anos. Completamente alheada do fenómeno global Jogos Olímpicos – no qual Paris está mergulhada – e estando apenas interessada em acompanhar a prova de uma nadadora francesa que ela vê como talismã pela forma corajosa como falou de saúde mental após um burnout, Blandine sente desde logo na pele os obstáculos ou barreiras – não da prova de atletismo – que se erguem e a impedem de ver a única competição que queria: culpa da mochila. No dia a seguir, após a primeira noite num dormitório sobrelotado, outro obstáculo se levanta: durante os JO o albergue só acomoda pessoas até aos 30 anos e Blandine ultrapassou essa idade precisamente no dia anterior, pelo que terá de partir, e dar lugar a outro na enorme fila de espera. A estupefação de Blandine dá logo seguimento a uma calma olímpica – tal como na cena anterior da mochila em que foi barrada – e, sem barafustar minimamente, prossegue o seu caminho.
Desde o início se percebeu que Valentine Cadic quis confrontar a dimensão de um fenómeno de massas como os JO e o impacto colateral que daí emana para o cidadão comum, surgindo Blandine como uma espécie de representação hiperbólica desse protótipo; aquela abordagem na rua de um repórter que questiona Blandine sobre os JO e ela acaba por colocar o enfâse na visita à família que não vê desde há muito, mostrando-se alheada das notícias correntes sobre o evento, é sinónimo desse propósito. A presença da irmã, da sobrinha e do ex-cunhado reforçam a intenção, aqui concretamente no plano de quem vive em Paris – ao contrário de Blandine. O pior é que a presença da família na história – acicatada pelas discussões de Julie e o ex-marido – acaba por quase relegar Blandine para a sombra, ou até para uma certa invisibilidade, que a personagem expressa com primor, mas que conduz ao apagamento. E aqui reside o erro de Cadic: Blandine, com a sua figura, com os seus trejeitos, com a sua singularidade e com a genuína pureza que emana, vale e tem de valer mais do que a mera representação dos cidadãos comuns que levam com eventos megalómanos como os JO em cima. Blandine tinha tudo para ser ela própria o filme. Quando lhe foi concedido espaço para ser algo mais do que um corpo estranho, a rapariga enigmática – “nunca se percebe o que vai na tua cabeça”, diz-lhe a irmã -, Blandine deu-nos o melhor do filme. Refiro-me concretamente às (fugazes) cenas dela com o eletricista noturno da piscina, um solitário que partilha uma certa peculiaridade com Blandine, quer na sequência no interior do pavilhão das piscinas, sob o azul de luz fosca acompanhado pelo ruído da água, longe de toda a azáfama, observamos um diálogo comum – de poucas mas precisas palavras e onde ficamos a saber que Blandine é professora de piano, faz parte de um coro, e toca em casamentos e funerais – que culmina num beijo na bochecha; e, quase no final do filme, quando ambos partem de scooter pela noite rumo à quietude da madrugada algures à beira-rio, com natureza à volta: “não ando à procura de amor”, diz-lhe ela, e ele aceita sem contradizer; dormem, só literalmente, juntos, e quando ela acorda, ainda antes do nascer do sol, avista ao longe a sua nadadora talismã, que lhe corresponde ao aceno de mãos – um momento mágico.