Dois minutos apenas e já os primeiros curiosos chegavam ao local, sedentos de aparato e histórias cabeludas. A chapa de matrícula, onde letras e números se desentendiam, compunha uma legenda difícil num quadro que, por si só, desafiava a compreensão.
Para desilusão geral, a sinistrada, única ocupante, saiu de gatas mas por seu próprio pé. E parecia determinada a procurar no chão algo mais que pudesse ter perdido, além do controlo do carro. Palpando os lábios com os dedos, como para ajudar a desencarcerar o discurso, tentou chamar a atenção daqueles que, esquecidos do socorro, se concentravam noutras questões vitais: “Derrapou? Adormeceu? Enfrascou-se?”. As primeiras palavras vieram reanimar a assistência, dando consistência à última hipótese:
– Acho que fui atingida por um meteorito!
Perante uma fila de carros desgovernada, Mário encostou à berma. Saíra de casa desconcertado, incapaz de gerir surpresa, raiva, incompreensão. A força com que o inesperado nos atinge. Com fúria marcial, fechara o computador como se desfizesse uma pilha de tijolos, gerando uma onda de vibração intensa. Contemplou depois os estragos, a cratera aberta na secretária, o vento que entrava sem cerimónia pelo buraco da janela. Com medo de si próprio, agarrou nas chaves e fez-se à estrada. Não queria pensar em nada, Vimos pelo presente e-mail, em absolutamente nada o plano de reajustamento da empresa, mas as palavras teimavam em colar-se-lhe à memória a redução do número de efetivos, como se projetadas no ecrã do para-brisas. Precisava de se sentir em movimento, longe dali, mas achou-se subitamente preso naquele para-arranca sem sentido. À passagem do reboque, compreendeu tratar-se de acidente. Porque tempo era coisa que não lhe haveria de faltar, resolveu-se. Saiu do carro e um forte arrepio, lembrando o casaco deixado no cabide, voltou a trazer-lhe à ideia a precipitação com que saíra de casa. Por favor não responda a este email. Puxou a porta com força e fechou os olhos. O outro mundo, que não o seu, ficou onde estava.
No perímetro do acidente, tudo difuso. Apercebeu-se de movimentações fluorescentes, de uma vibração de autoridade a ressoar numa voz, de uma atmosfera de fim de emissão, pontuada pelos intercomunicadores. Não pôde conter o pasmo: no centro de uma estranha depressão no pavimento, um carro capotado, num chão de jardim. Um escaravelho feio, inofensivo, de entranhas metálicas viradas ao céu.
– Hum… hum… aselhice ou bebedeira! – sentenciou alguém atrás de si, com um hálito incendiário.
Num relance, fixou uma mulher sentada na traseira da ambulância. Embrulhada numa manta, rejeitava as diligências médicas, reiterando a sua saúde perfeita e era aconselhada por um polícia, nervoso o suficiente, a soprar num aparelhinho. Na mão, exibia um fragmento escuro, repelido com veemência, pela autoridade. Mário tentou, sem sucesso, perceber de que se tratava. Talvez um amuleto. Em que acreditaria agora?
Desiludido com os valores, o polícia acomodava o bloco dos autos à prega da barriga e principiava a escrever. Mas escrever o quê? Definitivamente, estava mergulhado no caos. Nada funcionava. Nem balão, nem semáforos; até a Central reportava dificuldades de comunicação por baixa de energia. E aquela mulher a insistir na conspiração dos astros, com um estilhaço de plástico rígido na mão.
Se porventura fora este polícia uma alma mais sensível, assomar-lhe-iam decerto ao pensamento algumas reflexões sobre a fragilidade da condição humana, perante os caprichos do universo. Também ele, afinal, se sentia atingido pelo imponderável. Prestes a acabar o turno, pimba… saíra-lhe aquela ao caminho. Ao seu lado, um colega intervinha para reconduzir à Terra um guedelhudo com pinta de artista que garantia ao condutor do reboque estar na presença de uma instalação de superior arte urbana, “ao nível do melhor que se faz lá fora”. Deu o polícia umas pancadas no alcoolímetro e encostou-o ao ouvido, na esperança de lhe sentir alguma espécie de pulsar mecânico. Respirou fundo e voltou-se para a vítima:
– Vamos lá tentar novamente. Sopre aí com convicção, a ver se tudo isto começa a fazer sentido… •
+ Ilustração: Andrea Ebert