O espaço é antigo. O atendimento ao público faz-se através de um guiché de vidro temperado, com duas aberturas redondas que lembram grossas vigias de navios. São os olhos da repartição. É preciso aproximar a voz, que alcança a custo o outro lado, depois de atravessar o vidro a nado.
D. Hermínia está no seu posto, imóvel. Metade mulher, metade balcão. Observa tudo, lê gestos e expressões enquanto aguarda que o som chegue, distingue com precisão as frequências da voz, acanhada ou arrogante. Sabe quem sabe ao que vem, quem deixou passar os prazos e agora, quem dela exige satisfações sobre papéis que se instalam nas caixas do correio, molestando os mortos com as suas dívidas contributivas. Só mesmo a vida se acaba com a morte.
O nosso equipamento é moderno, mas a imagem que se projeta insiste no preto e branco: coluna direita, rugas profundas, blusa verde a cair sobre uma pele, atrevemo-nos a dizer, transparente. E por via do duplicado, uns óculos, claro, destoando o melhor que podem dos olhos da repartição.
Dizemos ao que vimos. Com um gesto leve, D. Hermínia faz notar a máquina das senhas, sem a qual nem mesmo a esta ficção se pode dar seguimento (ó Vítor, vai lá tirar a senha). A comunicação afunda-se. Para além de manter um diálogo desfasado, impõe-se dominar as regras de um estranho jogo de tabuleiro escavado sob o vidro, abrindo em semicírculo para cada um dos lados. Depositamos a senha, rodamos, passamos a vez. D. Hermínia recolhe-a e devolve-nos, de má vontade, algumas respostas.
Parece, antes de mais, não entender a nossa curiosidade: «Não vejo aqui nada de extraordinário», assegura. «São as exigências do serviço e o funcionário só tem de se adaptar». Assume a meia figura e assim vive no trato quotidiano e na memória das pessoas. Não admite a ninguém que lhe chame “apanhado de gente”. Agora se sonha ver ruir o balcão… D. Hermínia suspende-se e o seu olhar, por instantes, chega mesmo a intimidar-nos. Despede-nos com os requerimentos a que tem de dar despacho urgente. Abrimos a porta da rua, ao encontro do sol. A sala aproveita para oxigenar. Mas do lado de lá, há uma gota de água que desce pelos olhos da repartição (Corta).
Admite falhas de memória, mas diz que são compensadas pelo espelho retrovisor: «Está lá tudo o que eu acabei de ver, mas francamente… já não me lembrava».
Amílcar, 57 anos, taxista.
(Põe a legenda direita, Vítor!)
Amílcar, 57, 75 anos, taxista.
Mesmo para quem não o conhece, de táxi estacionado na praça, facilmente se percebe até onde vão os seus limites: confronta com a porta, a oeste; com o banco do pendura, do lado oposto, e com o céu de Lisboa, a norte. Em hora de ponta, confronta-se todos os dias com o resto do mundo.
Quem entra no seu mercedes não paga apenas a corrida, tem visita guiada a um museu. Vivem aqui pedaços de histórias antigas, muitas pessoas em trânsito, objetos esquecidos, encontros, desencontros, demasiada pressa em chegar. Pelo seu dia desfilam rostos e vozes, personagens e réplicas. O argumento que liga umas a outras só pode ter a sua assinatura.
Sim, conhece a cidade como a palma da sua mão. Sabe puxar conversa com as últimas da política e do futebol. Sim, resolve palavras cruzadas enquanto espera pelos clientes. O mesmo dedo, pedagógico, que tantas vezes mostra aos outros condutores, serve para apontar o rumo político do país: «Se todos votassem branco, não havia galos ao poleiro!». Nem sempre a viagem se faz pelo caminho mais longo; na dúvida, vamos diretos ao assunto.
Tem plena consciência de que, para os clientes, só existe daqui para cima. Não passa de um corpo interrompido, um projeto de gente que ficou a meio. Mas este taxista retribui a cortesia e recorta a figura aos outros pelos limites mínimos: uma fotografia tipo passe, um instantâneo tirado através do retrovisor e está pronto a seguir.
Há sempre uma dimensão das pessoas que permanece oculta, não há ninguém que se dê a conhecer por inteiro. Para Amílcar, tudo se resume a juntar a esta base de senso comum, um expoente generoso. «Viver assim não me faz diferença, já nem sei viver de outro modo», desdramatiza, enquanto um terço benzido em Fátima vai fustigando o vidro. «E depois, há partes que simplesmente não interessam para a história», remata.
Chegámos, embora não exatamente onde pretendíamos. Somos despejados no largo do centro histórico. Um busto régio, impondo a sua autoridade sobre uma rotunda, vem inesperadamente dar razão a Amílcar. Há partes que simplesmente não interessam para a História.
À medida que o táxi se afasta, sentimo-nos cada vez mais observados pelo retrovisor. Na parte de trás do táxi, um cãozinho de queixada solta vai largando a sua gargalhada ácida sobre o mundo. Pessoas que só existem daqui para cima. Valerá a pena insistir daqui para baixo? •
+ Susana Carvalho
© Ilustração: Sara Quaresma Capitão.
Partilhe com os amigos: