Permanece no Criptopórtico do Museu Nacional de Machado de Castro uma exposição conjunta de Rui Chafes e de Pedro Costa que, integrada no Anozero – Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, pode ser visitada até ao dia 31 de Janeiro de 2016. Note-se a recente distinção de Rui Chafes, a quem foi atribuído o Prémio Pessoa 2015.
“Família resulta de um diálogo entre as esculturas de Rui Chafes e filmes de Pedro Costa realizados em Cabo Verde, em 1994, durante a rodagem de Casa de Lava. A este diálogo juntam-se as vozes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet através do seu filme-tributo a Mallarmé.” É assim que se introduz, através do texto que consta na literatura de Anozero, a “obra” que por ora permanece no Criptopórtico da romana cidade Aeminium, hoje conhecida como Coimbra.
Existirão certamente diversas possibilidades de aproximação a uma obra de arte; aquela que sobre ela se debruça, e para evitar a queda, poderá mesmo valer-se da pragmática. Angústia perante a folha em branco? Gilles Deleuze transmite-nos que a folha, em lugar de branca, abriga inúmeros lugares comuns. Se a técnica do assalto permanece nas artes há mais de um século, ainda que amortecida pelo dito pós-modernismo, a crítica deverá pegar no gesto da obra e, no rastro da experiência, elevá-la à máxima reverberação. Assim, a palavra ressoa (n)a inscrição: O verbo faz-se carne duplamente. Walter Benjamin afirmava não ter absolutamente nada a dizer, apenas a mostrar; será aí que nos posicionamos? Portanto, mostrar Família.
O diálogo entre Rui Chafes e Pedro Costa começa em 2005 com Fora!, no Museu de Serralves, no Porto, continuando em 2012 com Mu, no Museu Hara, em Tóquio, Japão, e ainda na Bienal de Veneza, em 2013, onde participaram integrados no pavilhão de Cuba. Na exposição O Peso do Paraíso, decorrida em 2014, no Centro de Arte Moderna, na Gulbenkian, em Lisboa, e que nos permitiu observar um percurso de cerca de duas décadas relativo ao escultor Rui Chafes, fixou-se igualmente este diálogo. O escultor e o cineasta são acesamente denunciadores daquilo a que chamaríamos uma estética (e ética) fast, antítese do “plano fixo” colhido por ambos. Como Rui Chafes esclareceu a Óscar Faria por ocasião de uma entrevista publicada no Mil Folhas do Público, e que se remete à ocasião de Fora!, mas tem subjacente uma profunda constatação: “Aquilo que gostamos de chamar plano fixo, se calhar não é um plano, é um olhar, como lhe gosta de chamar o Pedro, é uma chamada de atenção para uma coisa muito diferente do embrutecimento colorido, ‘flashante’ e rapidíssimo da estética ‘vídeoclip’ em que estamos a ser envolvidos pela televisão e pelas notícias, por tudo. As notícias passam em rodapé em baixo e alguém fala por trás; há uma desatenção enorme e as pessoas gostam.”
Neste contexto, quando descemos as escadas em direcção ao Criptopórtico, acto já de grande simbolismo, e onde foram, aliás, captadas algumas imagens constantes de Cavalo Dinheiro (o último filme de Pedro Costa), despedimo-nos desse mundo colorido (e existe, ainda assim, quem nele não sucumba, e possa frear as escadas como as vestais se mantinham intocáveis…) e situamo-nos na luz e nas sombras. Como diz Rui Chafes, não nos enganemos: À beleza, os covardes não acedem; a arte tem de ser exercida segundo os valores antigos de coragem e de bravura. Ou, aqui, Cristina Campo, que nos fala de uma senhora que não se sentia preparada para a liturgia bizantina; porque a beleza fere. A beleza tem de ter as marcas da morte, como alude o nosso escultor.
Já situadas no piso inferior do Criptopórtico, local por onde nos indicam devermos começar o percurso, esperam-nos, mudas mas delicadamente eloquentes, cinco instalações de Rui Chafes, que se acomodam em cinco celas: Rumor; Este é o meu corpo I; Primeira luz; Nenhuma voz nunca; Este é o meu corpo II. Sete celas disponíveis na estrutura e cinco presenças escultóricas que se lhes acoplam, num cenário espiritual evidente. Uma história recolhida, que se inicia numa carícia, um beijo do inconsciente, sonhado talvez. E durmo; a humanidade dorme, não a acordes demasiado cedo, diz-nos Rui Chafes em O Silêncio de… Após a iniciação, a que acedo através da densidade luminosa, e sendo dependurado em vida, acordo. Um sonho?
Subimos ao piso superior, onde nos apercebemos de presenças indeléveis, passos, murmúrios, sussurros, passagens. Tantas pessoas estão ali, connosco, ainda que permaneçamos sozinhas. Como Luís Quintais afirma, o “diálogo entre Rui Chafes e Pedro Costa realiza-se […] numa afirmação da reversibilidade. A história não é um ponto de vista ou um ponto de fuga, mas uma comensurabilidade de mundos tornados inquietantemente mortais. A história despedaça-se como um navio de encontro às falésias, para revelar uma identidade profunda. A identidade que se estabelece face-a-face, numa co-presença em que o passado se torna estranhamente carnal.” É desta carnalidade do passado, bela expressão de Luís Quintais, que rapidamente nos apercebemos.
Vale a pena passar novamente por Rui Chafes e Pedro Costa, quando foram entrevistados para o Público, e sobre a questão de a obra de arte falar pelo outro; Pedro Costa adverte que “Acho que a gente não está a falar por mais ninguém…”. E Rui Chafes: “Nunca falo pelo outro. Nunca falo para um outro. O que vejo em cada dedada de uma escultura de Giacometti são milhões de pessoas, milhões de vozes. Senão aquilo não me interessa. Não me interessa o ego de Giacometti, nem me interessa o ego de nenhum artista no mundo. Interessa-me o que Giacometti conseguiu só por ter amolgado um pouco de barro: fazer ouvir milhões de pessoas. Aliás, o Genet fala disso, das vozes… Isso interessa-me, essa imersão em cada obra de arte. É por isso que algumas obras de arte me interessam mais do que outras. Interessam-me as obras de arte nas quais oiço a vibração, não é do outro, é de milhares de outros. Não me interessam egos, não me interessam vaidades, não me interessam indivíduos. Nesse sentido, interessa-me saber que o indivíduo tem de se defender do mundo e ao mesmo tempo tem que se abrir ao mundo. O sim e o não estão juntos, não estão separados; a morte e a vida não estão separadas, estão juntas. Interessam-me objectos que transportam em si um mundo inteiro, milhares de pessoas. Isso não é dar voz ao outro, é dar voz a milhares de outros.”
Rui Chafes e Pedro Costa conseguem-no; milhares de outros ecoam no Criptopórtico. Entre o Murmúrio e o Sussurro, os panejamentos subtis com que se pontua o espaço, milhares de outros nos visitam num face-a-face assombroso com o passado. Sensação que se abisma através dos rostos com que Pedro Costa liquidifica as sete celas deste piso; e vemos um povo que se ergue dos escombros da memória colectiva. A luz e as sombras. Parecem-nos existir duas ponderações essenciais em Família: o colectivo e o individual. Este, remetido ao piso inferior, conta-nos uma história recatada, singular, ainda que a dois. Aquele, no piso superior, proclama, em uníssono, todo um povo.
Pode visitar no Museu Nacional de Machado de Castro (ler artigo na Mutante sobre o museu), no Largo Dr. José Rodrigues, à terça, entre as 14 e as 18 horas, e de quarta a domingo, entre as 10 e as 13 horas, bem como entre as 14 e as 18.
© Fotografia: Jorge Neves
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