“Nós Matámos o Cão Tinhoso” de João Garcia Miguel / CCVF

Hoje, sexta-feira dia 07 de outubro, pelas 22h00, o Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor (CCVF), em Guimarães, acolhe a estreia absoluta da nova criação de João Garcia Miguel. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” faz parte do Ciclo Ondas Africanas, um projeto que se baseia no trabalho combinado entre atores, músicos e artistas visuais africanos e portugueses.

“Nós Matámos o Cão Tinhoso” tem por base o livro de contos de Luís Bernardo Honwana, escrito em 1964, considerada uma obra fulcral da literatura moçambicana moderna. Destes contos formaram-se duas peças, uma que ficará em Angola e outra a ser realizada em Portugal, cuja estreia absoluta acontece na cidade de Guimarães. Este projeto é um misto de formação e criação, que contou com a realização de diversas oficinas de formação e ensaios entre Luanda e as províncias de Benguela, Kwanza Norte e Sul e Huambo. A peça em Portugal contará com uma estrutura dramática aberta que fluirá entre os diversos contos de Luís Bernardo Honwana. Estes serão acoplados e montados entre si, permitindo que os dois atores portugueses (Sara Ribeiro e Frederico Barata) se juntem em determinadas apresentações com músicos, bailarinos ou atores africanos. Ou seja, a obra será idealizada com uma versão dupla. Os dois objetos viverão como irmãos: ligados entre si, mas também de modos autónomos.

O primeiro e mais extenso dos contos incluídos no livro de Luís Bernardo Honwana, que inclusive lhe dá o título, “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, é narrado através dos olhos e emoções de um menino moçambicano negro, chamado Ginho, que vive numa cidade. A história desenvolve-se à volta de um cão vadio, abandonado e doente, com o corpo coberto de feridas e de aspeto repelente. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” insere o leitor em estruturas sociais violentas, através de uma extraordinária capacidade de persuasão que envolve e move o espetador numa superior energia afetiva com o que é narrado. Com este projeto singular, a companhia João Garcia Miguel cede à urgente tarefa de observar, escutar, absorver e devolver depois aos outros o que é oferecido pelos mundos exteriores e interiores numa imperfeita alquimia de transformação, uma ambição que assalta e alimenta a permanente interrogação sobre o papel das artes e dos artistas nas sociedades contemporâneas. Sente-se uma profunda necessidade de desafiar a circunstância e a humanidade que nos sustenta. É necessário enfrentar os desequilíbrios que nos impedem de estar próximos das almas de que somos feitos. Precisamos de alma como de pão.

A impressiva luz crua dos contos de Honwana flutua entre a realidade exterior apercebida e a fluidez macia dos movimentos de uma interioridade implicada e atenta. As narrativas africanas têm em si a força de uma inocência que nos impele a viajar de novo, uma e outra vez às fontes de onde brotámos. As suas histórias permitem que subamos degraus de fantasia e falácia e que através de técnicas ancestrais de espreitar o ser nos vermos a dobrar. Dobrar sobre nós mesmos e a dobrar os joelhos de vergonha e compaixão. Contêm fortes e bem claras metáforas que nos auxiliam a caminhar de mãos dadas enfrentando os monstros e temores dos moinhos de vento de que somos feitos. Esta literatura é um exercício social de coragem que há muito parece esquecido entre nós, com uma forte componente pedagógica. Esta literatura enforma um ser coletivo que nos torna claro que a queda da Torre de Babel não se deveu à existência de muitos seres com muitas linguagens diferentes mas caiu, sim, porque o medo invadiu os corações fechados que pararam de bater em face das alturas que se lhes antepunham.

Hoje, se estiver por Guimarães, é imperativo ir ao teatro, ao CCVF. •

+ CCVF
© Fotografia: DR.

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