Ciclo Entre o Céu e a Terra / Gulbenkian Música

Desde sempre se atribuiu à música uma capacidade inigualável de chegar aos sítios que estão para além do entendimento, e é evidente a partilha de um certo estado de transcendência com as questões da espiritualidade. De cada vez que a palavra parece insuficiente, a música emerge e assume a compensação da razão pela exacerbação máxima dos sentidos. Vem aí a temporada 17/18 da Gulbenkian Música.

Intitulado “Entre o Céu e a Terra”, o primeiro dos três núcleos temáticos da Gulbenkian Música 17/18 propõe sete concertos ao longo de duas semanas no início de outubro, criando pontes entre vários intérpretes, compositores e obras que, de alguma forma, se relacionam, exploram ou abordam essa qualidade transcendente daquilo que existe para além da razão e da palavra.
Acima de todos estará, talvez, J. S. Bach, cujo fortíssimo simbolismo parece inundar muita da sua criação. Essa mesma marca de um diálogo interior, em que o homem se confronta com o inominável e adentra por territórios desconhecidos, surge nas obrigatórias Suites para Violoncelo solo, que Antonio Meneses apresentará no Grande Auditório e que são amiúde entendidas como uma conversa entre o Homem e o Infinito.

Através de uma tão forte característica identitária, quanto a relação com as crenças e os valores, através da música alcança-se uma maior compreensão das culturas, como na proposta de Magdalena Kožená, que reúne canções barrocas e flamenco, na música síria de Waed Bouhassoun, no canto sacro argelino de Houria Aïchi, nas obras das comunidades sefarditas do período barroco, pelo Ludovice Ensemble, ou ainda no meditativo Stimmung de Stockhausen, exemplos de como a expressão musical pode, em alguns casos, substituir-se à palavra para criar uma comunicação profunda, rica e movida pela curiosidade e pelo respeito pelo outro. Um ciclo obrigatório na sua agenda de outubro com este alinhamento:

02/10, 21h00 – O Barroco Sefardita, Ludovice Ensemble.
Após a expulsão de 1496, os judeus “da Nação Portuguesa” espalharam-se pela Europa e Próximo Oriente, organizando-se em comunidades florescentes como Amesterdão, Antuérpia e Londres, ou misturando-se com as comunidades locais, como em Veneza e no Sul de França. Em vários destes locais desenvolveram um rico património musical que combina os antigos textos litúrgicos e tradições sefarditas com as mais recentes formas e estilos musicais. No período Barroco a música impôs-se como efetiva “linguagem universal”, unindo diferentes religiões e culturas, e construindo pontes para o mútuo entendimento, ainda hoje tão necessárias.

08/10, 20h00 – Entre o Céu e o Inferno, Magdalena Kožená.
A prestigiada meio-soprano checa Magdalena Kožená lidera um novo projeto muito especial, no qual se encontra com o coletivo de música barroca espanhola Private Musicke e a Antonio El Pipa, Compañía de Flamenco. Uma colaboração que será certamente inolvidável: Pierre Pitzl tem por cognome “Jimi Hendrix da guitarra barroca”, El Pipa é considerado o grande herdeiro do flamenco puro e Kožená mergulhou a fundo na cultura espanhola ao preparar a Carmen de Bizet que estreou no Festival de Salzburgo em 2012, tendo aprendido a tocar castanholas e a dançar flamenco na sua preparação para o papel. Fórmula acabada para um espetáculo de profundo deslumbramento.

09/10, 21h00 e 10/10, 21h00 – Suites para Violoncelo de Bach, Antonio Meneses.
As Suites para Violoncelo solo de J. S. Bach são um marco essencial na carreira de qualquer violoncelista, tornando-se inevitável que o seu percurso se defina em grande parte pela relação estabelecida com este conjunto de peças. Tem sido também o caso de Antonio Meneses, cujas interpretações das Suites têm merecido amplo aplauso da crítica especializada.

11/10, 21h00 – Música Síria para Canto e Ud, Waed Bouhassoun.
Desde que se deu a conhecer ao público, Waed Bouhassoun tornou-se numa das grandes figuras da música síria. Em 2013, para o projeto Orient Occident II: Hommage à la Syrie, Jordi Savall percebeu que tinha de contar com o talento da artista. A edição do álbum de estreia de Bouhassoun, La Voix de l’Amour, valeu-lhe a distinção Coup de Coeur, da Academia Charles Cros, em 2010. A qualidade envolvente da sua música e a sua voz admirável, que lhe tem valido comparações frequentes a Oum Kalthoum, encontrarão no Panteão Nacional um cenário perfeito para espalhar o seu encanto.

12/10, 21h00 – Stimmung de Stockhausen, Solistas do Coro Gulbenkian.
Em resposta a uma encomenda para o Collegium Vocale da Rheinische Musikschule de Colónia, Stockhausen inspirar-se-ia na sua recente viagem ao México para dar forma à obra Stimmung (1968). Ao longo de um mês, o seu interesse e consequente exploração das ruínas maias e aztecas, assim como os rituais que ali tinham lugar, levaram-no a tentar imaginar-se parte daqueles povos, assistindo às suas cerimónias. De regresso, ao instalar-se com a família em Long Island, passaria para a música a sua relação com a arquitetura dos templos – subindo em ascensão ao céu e com faces indutoras de quietude ou de mudanças bruscas.

13/10, 21h00 – Cantos Sacros da Argélia, Houria Aïchi.
Após dar voz às canções berberes de Aurès, que lhe garantiram justa notoriedade, a argelina Houria Aïchi dedicou os seus últimos anos a uma precisa e exaustiva recolha de temas do reportório religioso do seu país. Através de encontros em que contava com a generosidade das gentes para construir este extraordinário inventário, Aïchi foi mapeando, da forma mais completa possível, todo o espaço geográfico e cultural argelino. A partir dessa empresa imensa, criou depois um espetáculo que dá vida ao reportório descoberto, que a cantora convoca para o presente e que espalha pelos mais diversos públicos, dentro e fora da Argélia.

15/10, 18h00 – Sinfonia n.º 3 de Górecki, Orquestra Gulbenkian.
Coro e Orquestra Gulbenkian interpretam um programa marcado por duas peças encomendadas pelo Santuário de Fátima: Salve Regina, de Eurico Carrapatoso, e The Sun Danced, de James MacMillan. A estas duas novas obras sacras junta-se a Sinfonia n.º 3 de Górecki, composta como um conjunto de três lamentos inspirados pela religiosidade e pela música popular polaca. A ocasião terá também como protagonista a reputada soprano portuguesa Elisabete Matos, volvida mais de uma década sobre a sua última presença na Gulbenkian Música.

A não perder, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. •

Gulbenkian Música
© Fotografia: Magdalena Kozená por CEMA – Oleg Rostovtsev.

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