Chef Pepe Solla: “O que define a tua cozinha é o produto, porque o resto são influências”

As raízes da cozinha galega servem-se à mesa do Atlántico, um dos restaurantes do recém-inaugurado Espaço Gourmet Experience do El Corte Inglés, em Lisboa, onde o oceano que banha Portugal e o Norte do país vizinho protagoniza uma cozinha simples, séria e cheia de sabor.

Atlántico, o novo espaço de Pepe Solla em terras lusas, com terraço e vista privilegiada sobre o casario lisboeta

Eram 12h10 quando chegámos ao já cobiçado piso 7 do edifício do n.º 31 da Avenida António Augusto de Aguiar da cidade das sete colinas. À nossa espera estava Pepe Solla, chef galego de 51 anos e cozinheiro há 25, ofício pelo qual decidiu enveredar em 1995 já depois de ter desempenhado as funções de empregado de mesa, de chef de sala e, depois, de sommelier do Casa Solla, profissão que o levou a fundar, em 1994, com um amigo, a Associação Galega de Sommeliers. Um ano mais tarde troca a sala pela cozinha e, no final da década de 90’ regressa à casa partida, ou seja, ao Casa Solla, o restaurante dos pais, na localidade de Poio, em Pontevedra que, em 1980 conquistou uma estrela Michelin. Desde então, o galardão do célebre Guia Vermelho tem vindo a ser renovado todos os anos, mesmo depois de Pepe Solla tornar-se proprietário do restaurante da família datado de 1961.

Uma vez que a Galiza ainda fica a uns consideráveis quilómetros de Lisboa, entrevistámos o chef galego no Atlántico, em Lisboa, onde predomina a cozinha galega, assim como o mar – sosseguem os carnívoros, pois há dois pratos de carne: costela de porco galego com batata e entrecôte de vaca galega com pimentos e batata assada –, e o conceito difere do da Casa Solla. Em contrapartida, reina a mesma filosofia: o valor do produto da região onde Pepe Solla nasceu.

Em que ano os seus pais abriram a Casa Solla?
Os meus pais abriram o restaurante em 1961. Foi fundado por eles e ali trabalharam até ficar para mim.

Quem cozinhava?
Quem estava na cozinha era a minha mãe. O meu pai estava na sala. Temos de compreender que, até há bem pouco tempo, as pessoas iam ao restaurante por causa da sala, ou seja, a pessoa mais importante era o mestre, o chef de sala. O cozinheiro era quem estava na cozinha apenas, portanto quem dirigia o restaurante era o meu pai.

Zamburinhas, uma espécie mais pequena de vieiras, em alho e azeite, é uma das entradas do Atlántico, assim como o lingueirão lima limão, o miolo de santola e maionese de wasabi ou o carapau em escabeche cítrico na cataplana, aos quais se seguem os clássicos galegos: empanada do dia, croquetes de marisco e tártaro de vaca galega com queijo de ovelha

Que tipo de cozinha tinha o Casa Solla na época dos seus pais?
Era uma cozinha mais simples, mais tradicional, mas galega mas, a pouco a pouco, foram revoluncionando a cozinha. Não podemos dizer que se instituiu um conceito de cozinha moderna, mas conseguiram implementar a evolução na cozinha à medida que o tempo foi passando.

Essa mudança teve influência da cozinha francesa?
Exactamente. Na altura, a influência na cozinha vinha de França, era a cozinha que marcava as tendências. Os meus pais passaram mesmo a incluir pratos da cozinha francesa.

As raízes da cozinha galega nunca foram, porém, esquecidas.
Nunca! A cozinha tradicional, na Galiza, tem muita força.

A pescada com puré de batata e “ajada” é já um best seller desta cozinha de Pepe Solla, em Lisboa

Quais são os pratos típicos da cozinha galega?
As empadas, os caldos, as caldeiradas, os peixes “À galega”, o porco – havia muito a tradição de se comer porco salgado –, entre outros pratos.

As origens da cozinha galega são muito prezados pelo chef.
Sim! Sobretudo o produto. O que mais marca uma região é o produto, porque cada vez mais, somos muito influenciados por outras culturas. Portugal, por exemplo, foi um país colonizador e trouxe muitas coisas das cozinhas dos países colonizados. No entanto, o que define a tua cozinha é o produto, porque o resto são influências. Por isso, sinto-me tremendamente galego pelo respeito pelo produto, mas também faço a cozinha galega “viajeira”, ou seja, continua a ser, para mim, uma cozinha galega, mas com influência de muitos países.

De que países recebe influência a sua cozinha?
De Ásia, influência latino-americana. Os galegos foram imigrantes, sobretudo para o sul da América. Nós, cozinheiros, também viajamos como se fazia nessa altura, porque trazemos culturas de outros sítios.

Que outra cozinha, para além da cozinha galega, o fascina mais?
Há duas que gosto, particularmente, muito e que são antagónicas: a do México e a do Japão. Quando fui ao Japão, dei conta de que a cozinha galega era muito similar à cozinha japonesa, por ser muito simples, muito focada no produto, muito de mar e bastante mais similar do que pensava. A cozinha galega não trabalha muito o produto tal como acontece no Japão.

De volta à Galiza: como descreve a sua cozinha no Casa Solla?
É muito mar, pela nossa proximidade, pelo território. Agora, a horta tem cada vez mais presença no restaurante. Estamos a cultivar produtos que, com o tempo, foram deixados de parte, que se deixaram de utilizar na cozinha, daí que estejamos a cultivar mais produtos do que antes e mais variedade também.

Que produtos estão a recuperar na horta?
Nabos, muitas variedades autóctones de tomate e de azeitonas, muitos tubérculos.

Caldeirada de corvina picante, um prato que, ao contrário das caldeiradas feitas por cá, é feito apenas com uma espécie de peixe

Horta à parte, foi o mar da Galiza que resolveu trazer para o Atlántico?
Exactamente. Um dos pratos que mais se vende é a pescada, um peixe que, aqui, ninguém gostava, mas que funciona muito bem. No geral, são pratos muito tradicionais. Os pratos de costela de porco e de carne de vaca, que vêm da Galiza, também funcionam muito bem aqui, porque os produtos chegam frescos. Se me perguntares se poderia abrir um Atlántico em Berlim, estaria a passar o limite no que à frescura do produto diz respeito.

O vinho galego feito com a casta Alvarinho, também ela da região raiana espanhola

Qual é o limite do Atlântico no Atlántico?
Podemos considerar a nossa costa: a de Portugal e a da Galiza. A costa que tem um clima muito semelhante, como acontece com a casta Alvarinho, que temos na Galiza e também há na Região dos Vinhos Verdes.

O marisco também provém da Galiza?
Vem da Galiza, mas também compramos num mercado aqui, mas são sobretudo produtos galegos, como as navalheiras, por exemplo. O pão também é galego, não por ser melhor, mas porque acho que faz sentido.

É feito onde?
Numa padaria artesanal de Pontevedra.

“Lisboa está muito mudada! É uma cidade muito moderna, cosmopolita e com um enorme potencial para criar tendências, apresenta um registo de modernidade maior do que Barcelona ou Madrid. Está num momento alto!”

Quando o convidaram para abrir um food corner num El Corte Inglés, por que razão escolheu o de Lisboa?
Queria abrir, especialmente, aqui. Estive há uns anos em Lisboa. Voltei há três ou quatros anos e, já na altura, me surpreendeu. Quando me convidaram, decidi vir outra vez e a cidade pareceu-me excepcional! Lisboa está muito mudada! É uma cidade muito moderna, cosmopolita e com um enorme potencial para criar tendências, apresenta um registo de modernidade maior do que Barcelona ou Madrid. Está num momento alto! Portugal, no geral, está num momento alto! Por isso, decidi apostar nesta cidade. Portugal chegou, finalmente, ao ponto de liderar a mudança na cozinha, uma mudança que era necessária, que custou a chegar. Sou um chef e digo-o com respeito e admiração pelos chefs de cá, como José Avillez, Kiko ou Henrique (Sá Pessoa).

Pepe Solla é também membro do Grupo Nove. Fale-me sobre este grupo.
O grupo surgiu espontaneamente há cerca de 17 anos. Começou com nove amigos que queriam modernizar a cozinha na Galiza, mas sem quebrar os valores da cozinha galega nem com a tradição, porque pode-se modernizar a cozinha, respeitando a tradição. Ao fazê-lo estamos a tornar a cozinha regional mais bonita. O mesmo acontece cá, em Portugal, onde os chefs estão a modernizar a cozinha portuguesa, com respeito pelo produto porque, em primeiro lugar, são portugueses e, em segundo, porque têm respeito pela cozinha portuguesa. Não podemos pensar que um foie [gras] é mais importante do que uma navalheira. Não o é! Isto é ter respeito, mas também temos de aprender a cozinhar o nosso produto e isso tem muito valor. Quando venho aqui, prefiro comer uma comida de cá do que um foie [gras], porque se me dão um foie [gras], não volto. Portanto, nós, os cozinheiros, temos a responsabilidade de conferir esse valor ao produto do nosso país, engrandecer o nosso produto. Não há produtos mais ou menos nobres. Temos de mostrar que são todos iguais e isto é um acto de honestidade. Temos de estar orgulhosos da nossa identidade, da nossa cultura e, Portugal está, neste momento, muito orgulhoso do que faz e isso é maravilhoso! Isso foi o que aconteceu com o Grupo Nove.

A paixão de chocolate de Pepe Solla e o arroz doce – também uma sobremesa típica da região espanhola – acompanhado por gelado de limão, dupla que combina na perfeição, estiveram à prova, faltando o creme de canela e cítricos, que fica para a próxima

Tudo começou com nove cozinheiros. Hoje são 22.
O grupo começou a ser formado por nove amigos. Era uma associação informal que, há 12 anos, se tornou mais formal. O nome vem de nove e a fonética é semelhante a “novo”, também porque queríamos reivindicar uma novidade, filosofia essa que permanece dentro do grupo.

Foi fácil implementar essa reivindicação num restaurante com estrela Michelin?
Nunca nada é fácil! Se for fácil, não é satisfatório. As coisas têm de custar para lhe darmos o devido valor. Não foi fácil, porque não queríamos romper com a tradição, porque é maravilhosa, mas tínhamos de evoluir a cozinha galega. Se a sociedade avança, também temos de evoluir.

Desde que ano o Casa Solla conquista a estrela Michelin?
Desde 1980, ainda com os meus pais. Porém, a estrela Michelin tem coisas boas e coisas más, por isso é importante que saibamos viver com ela, porque ninguém se recorda daqueles que a conquistaram em tempos. Recordam-se de restaurantes que, há 15 anos, em Portugal, conquistaram a estrela Michelin? Portanto, há que saber relativizar estas coisas.

Agora é ir, para experimentar. O horário do Atlántico, assim como dos restantes restaurantes do Gourmet Experience do El Corte Inglés funciona, de domingo a quinta-feira, das 12 às 00 horas, e de sexta-feira e sábado, das 10 à 01 hora.

Bom apetite! •

+ Gourmet Experience by El Corte Inglés
+ Pepe Solla
© Fotografia: João Pedro Rato

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