Patente na Galeria Sete, em Coimbra, e desde o dia 24 de Março, a delicada exposição de Eduarda Rosa cativa no primeiro olhar. Deixe por isso trespassar-se docemente pelas suas “formas primitivas”.
Eduarda Rosa nasceu no ano de 1949, portanto, conta a idade em 2018 que corresponde ao número 69. “Caso singular na arte emergente Portuguesa”, como o notou Miguel Wandschneider e é também fixado na folha de sala por Eduardo Rosa? Permitam-me a confissão: emergência e consagração, indo de par, causam-me algum desconforto. A afirmação enunciada justifica-se, sim, se a inscrevermos no tecido do mundo da arte, chamando à colação a crítica de arte (que se afirma não existir já!), o coleccionismo, a museologia, o circuito de galerias. Não nego a existência de tal mundo; mas gostaria de vos transmitir a perspectiva de um “espectador comum”, no sentido que lhe dá Eduardo Pellejero.
E que perspectiva é essa? Sobretudo apenas olhos: um corpo-olhar desejante, passível de atravessar, golpeando, o mundo da arte. Assim, o corpo-olhar destitui e desmobiliza as representações estabilizadas dos corpos-cheios-de-si para, pela flutuação e penetração aguda, agarrar as obras que devêm cativas. Digamos que Eduarda Rosa, antes dos seus 60 anos, terá “dormido” sobre o assunto da arte e das formas. A sua formação inicial é pois em Ciências Farmacêuticas e com especialização em Química Orgânica. Docência até 2005 e depois a arte, em cujo espectro concluiu uma travessia formal no ano de 2012.
Gostaria de assinalar quatro flashes: palimpsesto; catálogo de formas; escala mínima; segunda natureza. Estes flashes foram os raios faiscantes emitidos pelo corpo-olhar à medida que percorria as paredes da Galeria Sete ao volante do meu veículo sideral. Com efeito, paralela à entrada e servindo de montra, permanece uma parede que é um grande palimpsesto: quem sabe se a cornucópia da abundância de onde Eduarda Rosa emerge com o gesto firme e terno, aplicado depois nos laboriosos recortes, colagens e sobreposições, mas de onde brota igualmente o seu olhar tão penetrante, tal qual uma águia auto-disciplinada. Destacaria um delicado napperon, que se adivinha branco-alvo pela cercadura, pejado de capas e lombadas de livros.
No que respeita ao catálogo de formas, dispõe-se logo à direita, uma vez transposta a porta da entrada. Como nos elucida ainda Miguel Wandschneider, e concretamente aquando da exposição “As classificações sensíveis” ocorrida na Culturgest Porto, em 2016: “Durante dois anos, a artista inventariou, numa folha de papel, um conjunto de 365 figuras baseadas em formas preexistentes, encontradas em livros ou ao sabor das observações quotidianas, e que processa constantemente e de diversas maneiras em desenhos, colagens e esculturas.” Na verdade, vemos uma composição de folhas com aspecto enciclopédico, sobre cada uma das quais se sobrepõe, ou de cujas letras exala, uma forma específica e diferente. Espécie de alfabeto.
Entretanto, 12 colagens minuciosas circunscritas pelas formas do alfabeto e onde se detecta a tal escala mínima. Porquê? Porque no interior que delimitam pulsam pequenas figurinhas recortadas e coladas com a maior precisão, e paciência. Então, é como se existisse uma espécie de nevralgia interior; mas bem contida pelos limites que funcionam enquanto ordenadores iniciais. Por isso me referi a Eduarda Rosa como uma águia auto-disciplinada, a que não será certamente alheio o passado de rigor ligado à ciência, aliás, facto bem assinalado na folha de sala por Eduardo Rosa.
Explicite-se agora a questão da segunda natureza. Permanece na parede do fundo a obra “Formas Primitivas (mapa inteiro)”, de 2017, e que corresponde a um mapa de Portugal, composto por diversos fragmentos-folhas. Um documento deste tipo sintetiza a representação de um território delimitado, projectando-se mentalmente na percepção do espaço: como se o albergássemos nas mãos e ecoasse, simultaneamente, dentro de nós. Ora, no momento em que se sobrepõem as formas da arte a cada um dos fragmentos-folhas chama-se a atenção para um fenómeno de saturação imagética a que chamo, portanto, segunda natureza. Então, opera-se algo que Emmanuel Levinas descreve tão bem: acedemos ao mundo através de uma morada, e não vindo/as de um espaço sem afecção.
Eu deixei-me siderar. Rume, por favor.
A exposição estará patente na Galeria Sete até ao dia 28 de Abril de 2018. Localiza-se, a galeria, na Av. Elísio de Moura, 53, com o seguinte horário: Segunda – Sexta 11h30-13h00 e 14h00-19h30, ao Sábado 15h00-19h30. •