“Linha de chão”, Rui Neto

Com curadoria de Delfim Sardo, “Linha de Chão” foi uma exposição que permaneceu no CAPC – Círculo Sede entre 25 de Maio e 27 de Julho de 2019. Já terminou, mas perdura!

Visitei “Linha de Chão” no último dia em que a exposição decorria, visto não ter tido oportunidade para o fazer antes; esse momento coincidiu com a permanência de Rui Neto na CAPC e ainda fui a tempo de o ouvir parcelarmente na visita guiada que decorreu pela sua mão. Vou, por isso, aglomerar o que falou acerca do seu trabalho.

Que os buracos no chão são as vísceras da urbanidade, em que avultam os diários gráficos; que o vermelho é utilizado como cor que exacerba os sentidos; que o lápis proporciona maior detalhe e adequa-se mais fortemente ao real do que a cor, porque é mole, dando preferência, portanto, a lápis duros que permitam exercitar o pormenor; que “treina” o desenho até ao momento em que parece real, tendo aludido ao punctum de Roland Barthes; quanto aos enquadramentos não passarem pelo centro, justifica-os no limite da folha porque induzem sangramento, ou continuidade, mas também vertigem ou desequilíbrio; que o seu trabalho envolve a questão sobre o que o desenho sabe acerca do espaço ou, ainda, que espaços só são possíveis de descrever através do desenho; que, sempre que se desenha fazem-se imensas escolhas e o que cada pessoa vê é diferente; que as ideias de limite, de poder, delimitam o desenho e são subliminares; no processo, ou naquilo que suporta a actividade do desenho, e que pode partir da fotografia ou do vídeo, por exemplo, tenta ser económico e, portanto, optimizar.

Julgo que o/as artistas têm uma relação bastante ponderada com a optimização, ou seja, com o intuito de ser económico: existe uma espécie de “esquema” fulcral, sem ser fórmula, atenção, que exala da percepção e se sobrepõe ao trabalho total. Nesta perspectiva, considero que o/a artista funciona, ou apresenta-se, como exemplar privilegiado da construção de identidade e mundividência(s). Criar exige de alguma forma abrandar, o que não é o denominador comum do tempo que nos cabe actualmente viver: as ligações serão rápidas e fugazes, sem, por outro lado, acentuarem a vertigem a que se referiu Rui Neto quando o ouvimos. Que quero dizer com tal? Que o/a artista treina, de forma económica, as pequenas percepções, para utilizar a expressão reveladora de José Gil, e são elas as responsáveis, ao invés do alheamento ou dispersão, por espessarem o “esquema” fulcral, a que também poderá chamar-se experiência nuclear.

Assim, pareceu-me poder localizar o “esquema” fulcral de Rui Neto nos trabalhos que nomeia como Interstícios Urbanos, provindos de 2009 e 2012, ambos projecções horizontais, um em grafite sobre papel de arches de aguarela e o outro uma água forte sangrada. A partir dele, “esquema”, é como se se abrisse para a restante prática do desenho, um pouco como aquelas formações com peças que estão intactas e horizontalmente colocadas mas em que, fazendo tombar uma dessas peças sobre a seguinte, toda a formação começa a movimentar-se sequencialmente perante o nosso olhar e inerente excitação. Esta imagem que vos apresento, aliás, é bem exemplificada pelos desdobráveis em concertina a que chamou O que tende a não ser, ambos de 2019, e que resultaram de um levantamento fotográfico, quer do Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto, quer do Mosteiro de São Martinho de Tibães.

Enquanto me perdia e encontrava na exposição “Linha de Chão”, uma outra ideia ia instalando-se: Rui Neto tem um passado ancestral que remonta ao Renascimento. Delfim Sardo alerta, na folha de sala, que “a chave para a compreensão do método exaustivo do seu trabalho em desenho reside nos cadernos que vai preenchendo, única ocasião em que contactamos com o seu exercício do desenho à vista e, nesse sentido, tornando visível a forma como toma um ponto de vista, como concebe a representação do espaço, como a narração está presente – mas também como o desenho é, para Rui Neto, a prática de uma teoria a partir da linha.” Creio que acrescentaria, à linha, o plano. •

© Fotografia: DR.

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