“Paris, la nuit”: obrigada, Maria Helena (e Arpad)

Pertence ao ano de 1951, intitula-se “Paris, la nuit” e surgiu da mão encantada e encantatória de Maria Helena Vieira da Silva, quem inventou a cidade, inventou a noite, inventou o espaço e, por conseguinte, inventou o mundo.

Foi há muito tempo, aparentemente, apesar de parecer apenas uma gota com mais ou menos 100 anos: 1908 – nascia uma menina que seria um dia pintora. Apesar do berço ser de ouro e a raiz forte, viria a casar com Arpad Szenes, quem conheceu em Paris, judeu, o que, associado a ter perdido a nacionalidade portuguesa, os tornaria apátridas. Questiono: que melhor condição para exercer o ofício de amar do que o ser apátrida? Não são os heróis modernos aparentemente desapossados de terra, de que Ulisses, tanto o da Antiguidade Clássica, como o que saiu de James Joyce, são símbolo inquestionável? E, no entanto, como Emmanuel Levinas e Hannah Arendt afirmam, cada qual à sua maneira, a cada ser humano deveria estar prometido o seu quinhão na terra: seja pelo sentido de pertença ao tecido do mundo, logo, pela comunhão especificamente humana; seja pela segurança ontológica que a propriedade proporciona. De forma que no ano de 1956 Maria Helena e Arpad obtêm a nacionalidade francesa.

Mas a arte não conhece fronteiras, físicas; mas a arte não conhece diques, simbólicos. Uma obra de arte é finita, e não vale a pena apelar ao inefável; a obra possui marcadores físicos, mesmo se conceptualmente arrojada ao ponto de ser um punhado de nada: das duas uma, ou tem o invólucro do nada, ou a palavra “nada” denota-a. Uma obra de arte emudece, cala fundo, sim, mas já Mário Cesariny escreveu, ou gritou: “entre nós e as palavras, o nosso dever falar”, prestando precisamente homenagem a esse “metal fundente” vertiginoso. Ora, neste contexto, julgo que existem essencialmente duas formas de o fazer: como quem morde as canelas do/as demais (é a escrita provinda da mão direita), ou como quem sussurra um segredo (é a escrita provinda da mão esquerda); engane-se quem pensar que a primeira é a mais eficaz. Walter Benjamin bem disse que os golpes mais certeiros são os assestados com a mão esquerda e Cristina Campo corrobora que as experiências proporcionadas pela mesma mão cortam a respiração. Maria Helena Vieira da Silva, quero crer, pintou essencialmente com a mão esquerda. 

Entre nós e “Paris, la nuit”, o nosso dever falar: porque em 1951 o eixo da arte contemporânea dizia-se prestes a mudar a agulha, o que significa de centro difusor, que até então fora desempenhado pela capital francesa. E foram tantos e tantas o/as artistas que de Portugal rumaram a França, com este país a servir-lhes de novo berço e embalo; e não apenas artistas, mas também estudantes, outras pessoas, pessoas desesperadas, pessoas sem a segurança ontológica devida na sua origem. Vieira da Silva conheceria então Szenes em Paris: haverá outra cidade para conhecer o amor da nossa vida? Mesmo, imaginemos, que o conheçamos na Patagónia: a Patagónia é Paris, sim. Como a Amazónia é o oxigénio que necessitamos para respirar e como Lisboa é o mar em que nos aventuramos. “Paris, la nuit” é, por tal, uma homenagem evidente ao amor: porque o azul é a cor do infinito, porque o amarelo é a cor da luz, porque o vermelho é a cor da paixão. E o amor é isto: bondade que não tem fim, sentimento que aquece o coração e desassossego do corpo. Só bondade é piedade, só sentimento é política, só desassossego é guerrilha; para ter o amor é preciso a conjugação de todos, e, então: “Paris, la nuit”. 

Esta noite sonhei com Maria Helena Vieira da Silva e com Arpad Szenes: ela veio delicadamente cobrir-me o corpo na cama com uma manta de cores azul, amarelo e vermelho, cerrou-me as pálpebras e cantou baixinho para me sossegar; ele imaginou-me sentada na secretária a escrever sobre a ternura intensa que o ligava a Maria Helena, comoveu-se e desenhou-me nessa postura, deixando-me de presente uma folha que encontrei na mesinha de cabeceira quando acordei, ainda mal tinha nascido o dia. E foi assim que nasceu esta minha “Paris, la nuit”. 

Creio que “Paris, la nuit” poderia ainda nascer muitas vezes, tantas quantos os vossos olhos ternos desejem … Assim se sonhe, penso …

Imagem de entrada: Paris, la nuit, 1951 © Fondation Gandur pour l’Art, Genève. Photographe : Sandra Pointet © 2018, ProLitteris, Zurich

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