É assinada como “Cesariny, 48” e faz parte de uma série que o poeta-pintor, artista-não- artístico, intitulou de Sismofiguras, pequenos desenhos nevrálgicos que fazia sem o apoio da mão enquanto viajava em transportes públicos.
Cesariny acompanha-me há muitos anos, desde o momento em que vi uma exposição em Lisboa na Galeria São Mamede e, mais tarde, me detive n’ “O Operário”, datado de 1947, ano que coincide com a eclosão do surrealismo em Portugal, aliás, da responsabilidade, também e muito, deste poeta-pintor, e artista-não-artístico. Convém explicar o composto artista-não-artístico, não é? Mário Cesariny levava sempre consigo uma coroa invisível com três bicos: Poesia, Liberdade, Amor, cuja ordem, como gato que exercia as suas explorações nocturnas-diárias, deveria certamente estar sempre a baralhar; imagino Poesia, Liberdade, Amor, ou ao contrário, como um baralho de cartas que cortava aqui e ali, dava, para voltar a baralhar, para cortar outra vez, fosse com uma palavra, fosse com um lápis, fosse com o dedo, e dava, e dava, e dava. Deu muito até perceber que a realidade que para ele/s existia, existia mesmo, mas a outra, além de existir, existia, existia, existia, existia e existia: como disse a Perfecto E. Cuadrado, e está publicado.
Artista-não-artístico é, então, aquele que, pese embora a sua oficina esteja na arte, tem o corpo na vida. Cesariny, quem nunca conheci, mas que acompanhei no fim, sim, com timidez e três flores na mão, Cesariny, com quem nunca falei, mas que me presenteou com algumas leituras privadas, Cesariny, com quem nunca troquei qualquer palavra, mas que depositou as suas, quais sementes, no meu corpo… E aqui estou eu, também pela minha parte, a tentar ser uma crítica-não-oficial, porque eu, eu-mesma, é a implosão de tanta coisa, não é? E, diga-se o que se diga, a vida é, também e muito, os livros que lemos e as obras de arte em que penetramos. Cristina Campo afirmou que existe um Deus que protege das más leituras: costumo pedir-lhe intercessão; tanto quanto rezo ao meu Anjo da Guarda (Anjo da Guarda, minha companhia, protege a minha Alma, de noite e de dia – é daquelas coisas doces em que, de repente, se precipita a infância. Estamos no ano, no dia e na hora e, no entanto, ao proferir tais palavras, abre-se uma espécie de tubo de luz no peito…) “Guarda o melhor para ti!”, avisam-nos cautelosamente. Não sei, mesmo.
Se a arte ensina algo à vida é precisamente que mesmo guardando o melhor para si, seja a técnica, seja a ideia, seja o croqui, o mistério permanece. A obra de arte não é inefável, pois, como já afirmei, existem marcadores físicos que lhe são constitutivos, todavia, ressoa e estabelece uma espécie de malabarismo connosco. Na “Sismofigura” de 1948 que aqui vos deixo como proposta de evasão, Cesariny desenhou, às cegas, e nevralgicamente enquanto era transportado, um corpo. Mas este corpo tem uma ponta solta: será por onde tudo começou ou será onde terminou a sua trepidação? Nunca saberemos, pois não? Mas uma coisa é certa, parece-me: de acordo com a disposição visual da “ponta solta” poderíamos imaginar puxá-la, para ver o que acontecia. E o que acontecia, parece-me, é que, à semelhança do que Cesariny fez, também nós podemos baralhar, cortar e dar, baralhar, cortar e dar, baralhar, cortar e dar, e dar, e dar. E ainda que nos cansemos, não tenhamos dúvidas: alguém virá e continuará a puxar a ponta, e dará, e dará, e dará.
“Sismofigura” é, portanto, uma obra-de-arte (-não artística); e para mim, é também um Ás de Copas, a que Poesia, Liberdade e Amor fazem inúmeras festinhas. Miau…