“A Noite Estrelada”: Vincent van Gogh é presente

Vincent van Gogh pintou “A Noite Estrelada” no ano de 1889, a partir de uma vista de um quarto do hospício de Saint-Rémy-de-Provence, onde permanecia após ter cortado a própria orelha.

Vincent, van Gogh, como é mais conhecido na memória colectiva, legou-nos um património pictórico valioso e intenso, sem ter sido reconhecido durante a sua vida, apenas tendo vendido um quadro, vivendo com inúmeras dificuldades, através da ajuda, sobretudo, do irmão Theo. Não começou na pintura em tenra idade, mas dedicou-lhe a tempo o delírio dos seus olhos e a vertigem do seu corpo; a tempo de cumprir isto, que também afirmou: “A excitação que se apodera de mim ante a Natureza vai aumentando até me fazer perder os sentidos.” Diria que, ante Vincent, van Gogh, quem está também presente nas suas pinturas de uma forma muito especial, agora somos nós quem pode perder os sentidos. 

“A Noite Estrelada” tem van Gogh, tem uma noite estrelada e tem-nos: porque uma obra de arte apresenta-nos, de forma muito significativa e particular, a carne do olhar que serve de estofo ao Mundo. Diria, por tal, que as pessoas e as coisas não são recortes planos colocados por levitação invertida em cenários variados, mas sim dotadas de espessura e profundidade, em que a carne do olhar vem tornar-se, para uns, vento que acaricia – Emmanuel Levinas, para outros, ar que passa entre nós – Walter Benjamin, para algumas, coração da realidade – María Zambrano, por exemplo. Tanto o vento, como o ar, como o coração, são invisíveis: têm de ser vistos com outra coisa, embora nos entrem pelos olhos adentro. 

Vincent, van Gogh, quem viveu com tantas dificuldades económicas e inerente insegurança que provocavam, no entanto, deixava sempre clara na correspondência com Theo a “excitação” tremenda que criar lhe provocava, ou seja, afogava-se a direito na carne do olhar; existem abismos muito perigosos, na verdade. Camille Paglia, uma voz tão incómoda, conhece e sente bem que um/a artista é uma pessoa tendencialmente desequilibrada: afirma-o, e escreve-o sem hesitar. Porque criar provém de um excesso, de uma abundância, de uma intensidade, de uma obsessão, de um sentido de vertigem evidente. Como esquecer uma coisa tão simples? Talvez Vincent, van Gogh, restasse perplexo perante os valores astronómicos que as suas pinturas agora alcançam nos “mercados”.

“A Noite Estrelada” é ainda muito significativa porque nos coloca frente a frente com a noite, mas providencia as estrelas. Ora, também como Walter Benjamin o disse, e aqui o repito: as obras de arte iluminam a nossa noite, não a salvam, mas iluminam: não é pouco, pois não? Imaginemos uma escuridão impenetrável; mas se calhar já não somos capazes…talvez apenas as crianças ainda o consigam fazer, porque depois da invenção da luz eléctrica tudo mudou, não foi? Mas se conseguirmos regredir à infância, assim como que por artes mágicas, imaginemos uma escuridão impenetrável: as luzes não são aqui fundamentais? Sejam elas os pirilampos, aqueles bichinhos que apanhávamos no ar com as mãos, colocávamos em casa dentro de um copo invertido e no dia seguinte aparecia uma moeda; sejam elas as obras de arte. 

Penso que John Berger, quando se detém na forma como os zoológicos neutralizaram o olhar dos animais, imunizados contra o encontro, concluindo que se extinguiu, assim, uma relação crucial e correlativa de uma perda irremediável, nos ajuda a conceber aqui a catástrofe, impensável, que proviria da possibilidade de, um dia, aprisionarmos as “estrelas”. Uma coisa é inventar a luz eléctrica, outra, bem diferente, é apagar as estrelas que iluminam a nossa noite.

Imagem de entrada: “A Noite Estrelada” de Vincent van Gogh

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