Entre 1889 e 1893 Camille Claudel esteve a esculpir aquela que seria a obra a proporcionar-lhe o reconhecimento público; o reconhecimento para lá da condição de assistente de Rodin e de amante de Auguste: “La Valse”.
As dimensões de “La Valse”, em face da sua complexidade, subtileza, pormenor, arrojo e condensação de movimento, são muito curiosas, creio: 41,5 x 37 cm. Trata-se de uma escultura-jóia, mas também de uma pedra atirada por Camille Claudel, naquele sentido de ser uma síntese admirável: pelo que não será excessivo vincar o sentimento com que respira o par de “La Valse”. Mas falar de Camille Claudel é também lembrar Auguste Rodin, focando a relação criativa e amorosa que mantiveram: penosa para Camille, alimentícia para Auguste; formadora para Claudel, libertadora para Rodin. E falar de Camille Claudel nestes termos é reconhecer a impossibilidade de falar das mulheres que se implicaram artisticamente, pelo menos numa certa imanência histórica, atendo-nos pura e simplesmente à obra, já que a vida as atravessa como se as empalhasse.
No ano de 2017, embora se tivesse vindo a projectar e a executar entre 2009 e 2016, abriu em Nogent-Sur-Seine o Musée Camille Claudel, prestando homenagem a uma artista singular que viveu durante 30 anos, os “últimos” da sua vida, internada devido a instabilidade mental, circunstância de cárcere que ocorreu, também, com a conivência do seu irmão, Paul Claudel. Sem dúvida que o Musée Camille Claudel permite lançar um olhar que perscruta a obra na sua inteireza e complexidade, tecendo ainda relações com obras de outros artistas, o que vem inscrever a escultora na arte, por um lado, e, por outro, fazer justiça ao exílio de que foi alvo em vida.
É preciso dizê-lo, nunca sendo exaustivo vincá-lo: os homens são quem mais tem escrito sobre o amor, mas as mulheres são quem mais o tem carregado no corpo; o único problema, e não é pouco, é o facto de que o corpo nunca se cumpriu – as lutas genéricas das mulheres durante a Idade Contemporânea vão no sentido de poderem também escrever sobre o amor, e não exactamente na reclamação de que se cumpra o corpo. Escrever sobre o amor é aqui a imagem que mobiliza a possibilidade de as mulheres também virem a participar da memória colectiva e universal, figurando nos mais diversos panteões. Todavia, o que as mulheres deveriam também perceber é que os homens pagaram um preço muito alto para poderem falar sobre o amor: perderam o corpo. Daí que, não sem a sua factura social, como se demonstra pela relação agora aqui colocada em perspectiva de Claudel e Rodin, os homens mantêm uma melancolia extrema quanto a essa perda, pelo que a tentam compensar através das mulheres. E tentam compensá-la essencialmente de duas formas: através da esposa e através da amante; a primeira faculta-lhes a estabilidade, a segunda o acesso, pálido, ao paraíso perdido.
Pelo lado das mulheres, e colocadas perante a fome de corpo dos homens, fome de tal ordem, de tal natureza, que não se prevê, nunca, a sua concretização num corpo, espera-as a alienação ou a loucura. Porque, não nos enganemos, de uma mulher continuam os homens a secretamente desejar que mantenha qualquer coisa, seja a ordem, seja a decência; porque, veja-se, a fome de corpo dos homens é de tal ordem, de tal natureza, que se transforma ainda em horror e terror de virem a confrontar-se com o seu corpo singularmente. Pelo que a pilha de ossos que o Anjo da História, aquele que Walter Benjamin torneou, olha aterrado, é o amontoado indistinto de todos os corpos de todos os homens da Modernidade, mais os dos outros que venderam o corpo antes, a diversas entidades, para que se cumprisse cristalinamente o espírito. Nestes termos, as mulheres, pese embora possam demonstrar a sua empatia para com o Anjo da História, e eu confesso que demonstro, sim, não deveriam fazer-lhe companhia no sentido de procurarem na mesma pilha de ossos algo que lhes pertença. Porque tal pilha é a dolorosa, e de difícil admissão, loja de penhores onde cabe aos homens, a eles sim, só a eles, ir reclamar algo de seu.
Às mulheres deveria estar destinado outro vislumbre de futuração, outro rasgo, convidando os homens, claro que sim, para “La Valse” e perspectivando, em conjunto com eles, a possibilidade de se cumprir o corpo.