“La Veritá”, neste caso, está só. No entanto, deveria ter a companhia do Tempo: foi assim que Bernini concebeu – a Verdade a ser revelada pelo Tempo. Todavia, o próprio Tempo se encarregaria de deixar a verdade, só.
Na Galleria Borghese, que nunca visitei, mas que observo dispor-se em circunstância admirável na cidade de Roma, podemos encontrar “La Veritá”, do escultor Bernini, vinda directamente do século XVII e parte, parte apenas, de um conjunto mais vasto; tratava-se, com efeito, de colocar a Verdade a ser revelada pelo Tempo. Tal programa relacionou-se com um acontecimento preciso na vida de Bernini: quando o Papa Inocêncio X ocupa a cadeira de São Pedro, e preterindo Bernini em favor do arquitecto Francesco Borromini, e ainda, ao que se disseminou, por alegadas falhas na sua construção, manda demolir uma torre da Basílica de São Pedro projectada pelo escultor. Naturalmente, a demolição em si, aliada ao pouco favorecimento por parte de encomendante, e mecenas, tão importante, criou dificuldades a Bernini quem, inconformado, desejou tratar “A Verdade a ser revelada pelo Tempo”, alegorias de uma justiça que desejava para si próprio. Como se pode constatar na Galleria Borghese, e no texto que enquadra esta obra, nunca se completou em vida de Bernini, nem após a sua morte foi concluído pelos seguidores e até 1852 permaneceu, “La Veritá”, na casa de Bernini, situada na Via della Mercede, depois no Palazzo Bernini, na Via del Corso, até 1924, para a seguir ser armazenada na Galleria Borghese, ser adquirida pelo governo italiano em 1958, e poder, portanto, admirar-se em tal Galleria.
Pergunto: quem pode mandar demolir uma torre/campanário da Basílica de São Pedro no século XVII? Resposta: o Papa, Inocêncio X. E hoje? Quem poderia mandar demolir uma torre/campanário da Basílica de São Pedro? O Papa? Talvez não… Demos um salto diferencial… Cristina Campo, em Os Imperdoáveis, afirma que maturidade não é persuasão e ainda menos fulgurância intelectual: “É um precipitar imprevisto, direi mesmo biológico: um ponto que tem de ser tocado por todos os órgãos juntos para que a verdade possa tornar-se natureza. Como acordar de manhã e saber uma língua nova: os sinais, vistos e revistos, transformam-se em palavras.” A percepção, e postura, de Cristina Campo apresentam-se notavelmente relacionadas, julgo, com o que Friedrich Nietzsche afirma quanto ao saber histórico que assola o “homem” na Modernidade ao, como diz, acumular “quantidade fantástica de indigestos blocos de saber que, logo que se ofereça oportunidade, o molestam.” O que significa que, como o intempestivo filósofo alertou, um saber que se tome desmedidamente sem necessidade, até mesmo contra a necessidade, “já não actua como causa transformadora, impelindo para fora, e encerra-se em certo e caótico mundo interior, que âquele homem moderno designa, com estranho orgulho, como o seu «íntimo» característico.”
Nietzsche situa estas ideias em Da utilidade e inconvenientes da história para a vida, título bastante significativo e que nos prova que da “corrida de archotes” da história monumental também por ele localizada resultaram, sempre, as sobrevivências do que é grande. E o que é grande aqui? O Papa Inocêncio X, de quem Francis Bacon fez aliás um “retrato” fantasmático admirável, e o seu gesto de derrubar a torre/campanário projectada por Bernini que, dessa forma, desapareceu para sempre, substituída pela de Borromini. Curiosamente, tal gesto possibilitou que “La Veritá” conhecesse a vida pelas mãos do impulsivo artista; como lhe ficou a faltar “O Tempo”, é caso para nos interrogarmos: será que falta sempre o tempo para revelar a verdade? De certa forma, esta interrogação relacionar-se-ia com o fim da História; fim que não existe. Como não existe o fim da História, parece-me importante não burocratizar o saber, estar atento/a, pelo menos, a essa anti-burocratização da sabedoria. Será o que vemos, hoje? Penso que não: essencialmente não. E, essencialmente também, penso que seria muito importante entender-se, individual e colectivamente, como Franz Rosenzweig precisa, e Mendo Castro Henriques deixa bem cravado na reflexão que lhe dedica, mais ao pensamento dialógico, que “o livro não é um objetivo a alcançar. […] O final do livro é um salto para a vida e o mais importante é fechar o livro e recomeçar a viver.”
Bernini deixou-nos “La Veritá”, mas não a terminou, o que significa que, como Rosenzweig precisa, ela, à semelhança da verdade comunicada pelo filósofo, e cuja Estrela cunhou, deverá ser continuada por outro/as e de outros modos. Porque existem “verdades” que o “nosso” presente não revela, mas que apenas o Tempo repõe; 300 anos foi o tempo que “La Veritá” de Bernini esperou para ser encastrada na malha cultural. Erwin Panofsky já explicou que as obras de arte também estão sujeitas a processos físicos de envelhecimento, e podem mesmo eclipsar-se; pelo que o passado histórico colectivo, pelo que as obras de arte partilhadas, são reanimado/as e não caem em bloco nas nossas cabeças, absoluto/as: a memória tem recursos próprios, e nem todos são perpassados pela consciência, provindo igualmente de um acaso que não deverá vilipendiar-se. Aliás, não acham curioso este desfasamento: entre o acaso em que a arte na Modernidade insiste de forma tão vivaz e a gestão securitária do Tempo, da História, da Arte, observável num plano político (-económico-financeiro), ou melhor, de ausência de Político? Para integrar o acaso é necessária a “maturidade” de que fala Cristina Campo; e maturidade, acrescento agora, não é colonizar o Futuro, obstando a que existam dias no Presente para serem vividos e saboreados, mas também obstando a que existam horas do Passado que não foram resgatadas, transformando-o, ao Passado, na transparência de uma memória colectiva em que no indivíduo, onde ela realmente se manifesta e como Hans Belting corrobora, não mais haveria órgão interior protegido de olhares alheios de onde brotasse.