Corações de Atum. Ena Pá 2000. Irmãos Catita. Mais outros tantos ou menos tantos. Mas acima de tudo, o indivíduo, o único, o incomparável eterno candidato do povo português, Manuel João Vieira. É ao Candidato e Músico e Criativo Vieira que dedicamos esta nota e ao seu mais recente e inesperado trabalho “Anatomia do Fado”.
Editado no passado dia 16 de outubro, “Anatomia do Fado” chega-nos com o selo do Museu do Fado Discos e após ser ouvido de fio a pavio tornou-se inevitável esta nota, na Mutante.
Tudo arranca com “Fado 22“, mas não é prenúncio. O disco duplo tem 32 fados, e não 22, e quer “Ser Milionário” para certamente dar o que promete: o Ferrari para cada português. Há “Fado Tejo” e “Fado Boi“, não iremos divagar sobre a sequência porque temos na mira “Duas Mortalhas” e uma “Confissão“, que não a da Cova da Iria. “Bom Conselho (Juras)” queria dar Judas num “Nunca digas Não” a quem? Tratava-se de “A Freira” na “Travessa da Espera“, “Sem Pés Nem Cabeça“. Pois “Os Avarentos” que dizem “Amor é Água Que Corre“, não querem ver a Freira a “Ser Fascista” e estão em “Abnegação” junto com “Os Preguiçosos“.
Mais uma ficha, mais uma viagem e o CD 2 começa com o “Fado Barnabé” na “Estação das Chuvas (La Saison des Pluies)”, dentro do “Mar Profundo“. A “Anabela“, que conhecemos “De Dentro Para Fora”, reforça que “Mulheres Há Muitas” e no “Fado das Trincheiras” comunica-nos que o “Belchior Foi ao Japão (Marcha Manuel Faria)” e que escusado é dizer “Procuro e Não Te Encontro“. Como somos “Da Mesma Carne (Fado Fininho)“, “Caminhemos” para um “Fado 14” que é o 11 no alinhamento deste CD 2. A “Casa Importante“, da Anabela, é afinal d’”O Português” que orgulhosamente diz “Sou Caloteiro” mesmo na recta final de um “Fado Anarquista“.
Se o que acima escrito faz sentido? Não cremos, mas são os 32 fados que fazem deste “Anatomia do Fado” um disco obrigatório pelo seu rótulo inevitável de surpreendente por ouvirmos um Manuel João Vieira a viajar para fora de um registo que lhe é mais habitual e que lhe reconhecemos como “genuinamente seu”. E porque seria pecaminoso não o publicar na integra, deixamos o texto de apresentação de Manuel João Vieira para este seu novo trabalho, onde tudo é explicado, corda a corda, nota a nota.
“O Lelo Perdido é um grupo que foi criado sobretudo para pegar nas letras um tanto esquecidas dos antigos fados humorísticos, e de outros, que, pela candura das suas letras, já perdidas no tempo, acabavam por fazer sorrir. Os fados humorísticos abordados neste disco, Anatomia do Fado, à exepção dos originais e do ‘Tenho uma casa importante’, de Neca Rafael, são todos do reportório do brilhante Joaquim Cordeiro, do qual comprei inúmeros singles na Feira da Ladra, quando estava à procura de material antigo para os espectáculos de Os Irmãos Catita. Do número que fizemos durante cerca de 5 anos no Cinearte faziam já parte temas como Os ‘Preguiçosos’, ‘Belchior foi ao Japão’, ‘Mulheres há muitas’ ou ‘O soldado da Trincheira’. Alguns destes fados tinham-me sido apresentados por outros membros do grupo, como o João Leitão, outros tinha-os ouvido cantados pela voz do meu pai.
Depois do Cinearte, ou em noites de semana, por vezes passava no Johnny Guitar. Quando este fechava ia beber um copo ao Truque, um sítio fabuloso onde o Fado vadio era entremeado com espectáculos de strip, e ainda se comia qualquer coisa. Foi nesse sítio onde, já com alguma carga alcoólica, implorei aos músicos para que me deixassem cantar o tema patriótico e imortal ‘O soldado da Trincheira’. Conheci então, nesse local improvável, nos longínquos anos 90, o Vital Assunção, que amavelmente, me concedeu a licença de cantar uma canção uma vez por outra, para desespero da clientela, vindo mais tarde a ser o viola do Lello Perdido, grupo fadista exclusivamente criado para que eu me pudesse divertir a fazer de conta que cantava fados e que fez aliás bastantes espectáculos, muitos deles com o saudoso João Chitas na guitarra portuguesa.
Nunca foi editado nada deste grupo, fora algumas canções que fazem parte de uma compilação de músicas com bandas não editadas do Maxime editadas pela revista Blitz, e a certa altura, e após uma sugestão nesse sentido depois de uma exposição de pintura com temas fadistas no Museu do Fado, deu-me para pensar em editar um disco com esse material. Escolher as canções foi o mais difícil e confesso que acabei por pôr músicas a mais. Ainda por cima resolvi gravar também alguns fados originais, que seriam para um disco sentimental e que têm umas letras mais melancólicas, o que por sua vez me fez introduzir também dois ou três fados tradicionais sentimentais. A única vantagem neste disco duplo é que dá para ir de carro de Lisboa a Bragança sempre a ouvir o mesmo disco. A desvantagem é a mesma. Não incluí no disco, porém, alguns fados pornográficos dos anos 70 que canto nos espectáculos porque senão daria para ir a Bragança e voltar e porque preferi fazer um disco practicamente sem aquelas palavras que não aparecem na rádio, o que é uma novidade para mim. Tive um ataque de afonia, anginas, tosse e rouquidão durante as gravações, pelo que a voz poderá não estar em estado cristalino, fora a canção da ‘Freira’ e o ‘Fado Anarquista’, gravados ao vivo. Gostava de salientar a paciência e trabalho dos músicos que me acompanharam, o Vital da Assunção na viola, o Arménio de Melo na guitarra, salvo alguns temas muito bem gravados pelo Sandro Costa, e, no baixo acústico, o Múcio Sá. Tive também a grande honra de ter sido assistido nas misturas pelo grande técnico de som José Fortes, no seu fabuloso estúdio móvel, em Vilar.“
Para ouvir e reouvir este manancial de fados humorísticos com Manuel João Vieira na Voz e Bandolim; Vital da Assunção na Viola; Arménio de Melo na Guitarra Portuguesa; Múcio Sá no Baixo-Acústico e na Viola no tema Estação das Chuvas; e Sandro Costa na Guitarra Portuguesa nos temas Duas Mortalhas, Os Preguiçosos, Anabela, Belchior foi ao Japão. •