“Pietà Rondanini”, por Miguel Ângelo

Local onde se encontra actualmente: Castelo Sforzesco, Milão. Material: mármore. Autoria: Miguel Ângelo. Datação: segunda metade do século XVI. Inacabada.

Miguel Ângelo, artista de quem esperamos, e vemos, formas bem definidas, musculaturas vigorosas, corpos lapidares, veias palpitantes; Miguel Ângelo, artista que nos legou uma “Pietà” que é obra-prima, trabalhou nos últimos anos de vida numa outra, “Pietà Rondanini”, que não chegaria a concluir. Realmente, esta escultura – “Pietà Rondanini”, mais facilmente nos remete a imaginária medieval. Existe uma potência da linha na arte que bastas vezes se associa, na sua exemplar manifestação, à arte moderna; talvez aqui se apresente essencialmente indomável, mas a verdade é que tal linha sempre atravessou a arte de todos os tempos: bastaria na verdade abstrair o motivo para extraí-la. Exemplifico: Descida da Cruz, de Pontormo – os corpos parecem nervosas linhas coloridas; Ressurreição, de El Greco – os corpos parecem linhas/labaredas de cores tremeluzentes; A Criação de Eva, de Miguel Ângelo – os corpos parecem linhas/blocos de cor esculpida; O Castigo de Marsias, de Ticiano – os corpos são cor na iminência de escorrer, unicamente sustentados pela força da linha. 

O que advogo é que um/a artista, tal como quem se vê a braços com o pensamento, reflectindo(-o), sabe exactamente o valor de tal linha: é aquela a preservar a forma, a evitar que, por dentro, a obra se desagregue; e é também a que permite elevar a obra à máxima vibração. Quero acreditar que as obras de Miguel Ângelo comungam desta linha de forma interna, acontecendo que na “Pietà Rondanini” ela externaliza-se. René Huyghe observa que a arte moderna despiu as obras, o que não deixa de ser curioso: é quando mais se vê a face interna que, através de intrincada relação, se verifica também uma maior externalização, o que também pode considerar-se como maior exposição. Permanecem, portanto, as obras de arte nuas? Esta circunstância muito deve ao alerta de Emmanuel Levinas, de que existe um interior do exterior, bem como um exterior do interior, ou à “reversibilidade” para a qual Maurice Merleau-Ponty chama a atenção. Tal “reversibilidade”, extraída do pensamento de ambos, tanto se reflecte no caso da arte aqui em debate, como alastra para a visão que se reserva aos problemas da vida, às análises, portanto, da realidade onde nos encastramos. 

Pelo facto da “Pietà Rondanini” ter sido trabalhada por Miguel Ângelo nos últimos anos, gostaria igualmente de prestar aqui homenagem a todos os pensadores que nos legaram, e legam, reflexões audazes quando se encontram no que geralmente se denomina o Outono da vida. Gilles Deleuze, Marc Augé, Michel Serres, Alain Touraine. Numa sociedade e tempo de contabilidades desgastantes, de corridas e crescimentos constantes, de produções em massa, é muito bom sentar e ler um livro com ideias maduras. Por que razão não se pode parar? “Parar é morrer” … Uma coisa é perder a esperança, algo a que deve obstar-se; outra, bem diferente, é correr desalmadamente em direcção ao Vazio.

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