A Beatitude, também com Giovanni da Modena

Giovanni da Modena viveu entre os séculos XIV e XV, sendo que este seu quadro da “Virgem e o Menino” está datado como pertencendo a entre 1420 e 1425, e permanece no Museu do Louvre, em Paris.

Vou partilhar convosco uma situação que me sucedeu há quatro anos, porque penso que é importante pensar profundamente o que lhe está subjacente. Participava num colóquio feminista em Coimbra, tendo escolhido reflectir com uma obra de arte, no caso, Mulher-Terra-Viva, de Clara Menéres, e centrar a análise na maternidade como eixo-coordenada fundamental, também, da experiência feminina e, por extrapolação, da sociedade. Devo dizer-vos que a minha explanação não foi assim tão bem acolhida, sendo que me disseram, entre outras coisas, “mas as mulheres sempre foram mães!”! Nesse momento, o meu pensamento ficou um pouco turvado, e ainda me ocorreu: e se forem radicais, já funciona? Penso que se trata de situação análoga quando não se pretende chamar princesa a uma menina; questiono, e se se lhe chamar morcego, já funciona? 

A maternidade é, sem dúvida, eixo-coordenada fundamental, também, da experiência feminina e, por extrapolação, da sociedade: não me parece que possamos descartar-nos de uma evidência tamanha. Todos os esforços para desencarnar os homens e as mulheres, como Sylvianne Agacinsky alerta com inteligência e temor, serão desastrosos. Uma coisa é, sem dúvida, denunciar a forma como a energia da concepção e engendramento de humanos por parte das mulheres foi apropriada por forças poderosas, e que as remeteram, às mulheres, para um longo exílio. Outra coisa é negar a energia da concepção e engendramento de humanos por parte das mulheres, e deixá-la entregue a novas forças que já se provam ser outros corcéis, nomeadamente, as da tecnociência. Além disso, uma criança não deveria resultar de uma espécie de birra civilizacional, ou seja, se o/as outros/as podem tê-las, e fazê-las, por que razão nós não as podemos ter, ou fazer? 

Toda a fantasia de conceber e engendrar humanos fora de um útero de mulher, ou alugando um útero, pertence a homens, e pertence, mais especificamente, a uma certa herança masculina de rarefacção da vida, provindo ainda de uma fractura que o feminino impõe, sempre, ao conhecimento no sentido de uma epistemofilia como a nomeia José Gil. E o que é a epistemofilia? É um conhecimento que não se detém na vida, que segue por uma operatividade imparável e que o faz experimentar sem se preocupar com o sentido. Naturalmente que não nego o amor homossexual e lésbico, nem todo o amor que faça associar seja quem for a quem quer que seja, nem o amor-excedente que de tais relações exala e que pode tocar uma criança. Simplesmente defendo que uma criança provém da diferença, e não me parece que a minha posição seja hétero-normativa, ou cisgénero, ou que não esteja alinhada com o tempo. Além de tal, existem de facto opções, disposições, comportamentos, que devem ser encarados como marginais, com toda a profundidade ontológica e existencial que lhes está associada. 

E em que é que todo este rio de palavras se relaciona com a “Virgem e o Menino” de Giovanni da Modena? Então, porque se trata de uma obra que fixa uma maternidade muito especial, aquela sem pecado original. E aqui obrigo-me a uma paragem: uma criança é de facto feita sem pecado original, porque existe um ponto no amor sexual em que os corpos se dissolvem, as identidades se confundem, o passado e o presente e futuro se suspendem, e a beatitude impera. Por isso é de uma angústia atroz a sociedade pedir a uma mulher que engravidou na sequência de uma violação que mantenha o desejo de ter a criança, o que apenas pode ser deixado ao critério estritamente pessoal, devendo ser simultaneamente preservadas todas as condições de saúde para providenciar a sua opção. 

Também a “Virgem e o Menino” de Giovanni da Modena porque toda e qualquer criança é beatitude, e toda e qualquer mulher, quando em chamado estado de graça, mesmo em situações complexas, e elas existem, sabemo-lo, sabe intimamente que porta uma promessa e encarna sempre o princípio de todos os tempos. Toda a mulher sabe que acolhe uma transcendência dentro de si, mesmo em situações complexas, e elas existem, sabemo-lo: carne da carne. Portanto, o tráfico associado ao nascimento de crianças que correspondem a birras civilizacionais apenas pode significar uma catástrofe humana, esta sem precedentes, já que nunca vista no passado existente e potenciada agora pelos corcéis da tecnociência, que pelo menos desde o século XVII penetra, com devassa, a natureza e, correlativamente, retira sucessivamente os véus ao humano.  

Não compreendam, através destas minhas palavras e posição, que defendo o regresso a outro passado, mas antes, sim, o regresso a um futuro que respeite certos limites e compreenda que o ser humano tem uma dimensão sagrada e transcendente que deveria ser inviolável, e que permanece derradeiramente inscrita no corpo. Um filósofo indagou: o que pode um corpo? Devíamos prestar muita atenção a esta indagação.

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