Mona Lisa / Leonardo da Vinci

Começado, tudo leva a crer, no ano de 1503 e na cidade de Florença. Pertencente actualmente à colecção do Museu do Louvre, em Paris. Marcel Duchamp colocou um bigodinho e uma barbicha na protagonista. Quem é?

Mona Lisa, ou também denominada Gioconda por afinidade do casamento, dispensa apresentações: saiu da mão do aclamado Leonardo da Vinci, pintor renascentista reconhecido, tanto no seu tempo, como depois, também hoje. No Museu do Louvre o/as visitantes apinham-se na sala que lhe correspondeu (sim, porque à pintura irá reservar-se nova posição), empunhando as máquinas fotográficas e os telemóveis para captar o instantâneo da prova. Depois certamente fazem circular essas imagens pelos canais respectivos, de modo a que cavalguem nervosa, e compassadamente, o espaço global. Além disso, desde que Marcel Duchamp lhe colocou por volta de 1919, a Mona Lisa, numa reprodução, um bigodinho e uma barbicha, digamos que esta pintura se elevou a ícone também contemporâneo e não faltam Mona Lisas com gelados na testa, brincos no nariz, óculos de sol, cigarros na mão, turbantes na cabeça, etc., etc., etc., … Claro que o gesto disruptivo de Duchamp, pela via da saturação imitativa, seria desta forma amortecido, mas também é verdade que se constata a apropriação de um símbolo civilizacional inequívoco, entranhando-se, assim, no caldo de uma cultura à mão de todo/as. 

Mas regresse-se ao gesto disruptivo de Marcel Duchamp, o que realmente se apresenta como fundador. Existem diversas abordagens para dar conta do seu significado: dessacralização da arte clássica e, então, dos valores que informam um sistema de estrelato vertido para a sacrossanta História da Arte e suas obras-primas; alusão à homossexualidade de Leonardo da Vinci e, por tal, à condição de espelho que Mona Lisa poderia representar; degradação do feminino e, por extensão, do corpo e da aparência das mulheres. Fiquemo-nos por estas três abordagens-coordenadas, que já nos dão muito que fazer, e pensar. Inscrito na imanência dadaísta, depois de ter iniciado uma aproximação às artes através do desenho e da pintura, com enlevo e desencanto, à vez, Duchamp prova a sua iconoclastia através do ready-made, não sendo diferente no caso que temos agora em mãos. O bigodinho e a barbicha que colocou a Mona Lisa estão, assim, na gravitação de uma fúria dirigida à tradição que passa sem o crivo da crítica aguda, insistindo na necessidade de se reverem os valores que a caucionam. 1ª abordagem-coordenada.

Quanto à 2ª e à 3ª abordagens-coordenadas, creio poderem ser perspectivadas em articulação estreita. Quererá Marcel Duchamp alertar para uma projecção de Leonardo da Vinci através de Mona Lisa? Ou seja, se Leonardo é/era homossexual, abrir-se-ia uma via de impossibilidade de aceder efectivamente à alteridade e, então, poderiam contar-se mais obras de arte inseridas em tal perplexidade: os homens teriam encetado exercícios de sublimação, e não dado conta de identidades precisas, concretas, únicas, dialogantes? Acontece que o alvo-fantasma actual de denúncia por parte do universo do/as excluído/as, no que respeita à fabricação histórica da imagem, recai sobre o homem branco e heterossexual, aquele que cristalizou a norma, o padrão, ambas entidades opressoras e medidas de uma naturalização de aparências que impuseram tiranias enxertadas no tempo e espelhos mágicos, também, que disseram sempre aos homens “não” como resposta à pergunta: “espelho mágico, espelho mágico, haverá alguém mais forte e poderoso, inventivo e original, do que eu”? Nestes termos, Mona Lisa seria um espelho mágico para Leonardo da Vinci, o que se tornaria manifesto pelo gesto de Duchamp, contribuindo, concomitantemente, não para funcionar como criadora de feminilidade, mas tornando, ao invés, as mulheres ainda mais irreais. E para Marcel Duchamp? L.H.O.O.Q., como intitulou esta sua intervenção, é o seu espelho mágico? E será que a pergunta se mantém a mesma: “espelho mágico, espelho mágico, haverá alguém mais forte e poderoso, inventivo e original, do que eu”?

Ora, mas Leonardo da Vinci seria homossexual, e, segundo algumas abordagens, acentuadamente celibatário … Verdade, verdade, parece-me, é que o gesto de Marcel Duchamp vai travestir Mona Lisa … e a alteridade, ainda que se defenda ser adulterada, porque seria uma invenção masculina, é destruída. Sim, porque julgo que não se pode, mesmo, vilipendiar a arte do passado, concretamente aquela produzida pelo homem branco e heterossexual: sobretudo, não se pode ir ao passado como ele foi, mas como poderia ter sido, segundo o que Walter Benjamin defende; sobretudo, não se pode ir ao passado com as malas feitas do presente, sob pena de se recusarem obras essenciais. Portanto, por um lado, o passado não está congelado, por outro, o presente não é a medida do Tempo, nem o futuro é entidade garantida. 

Este texto acabou de escrever-se no dia 2 de Dezembro de 2020, precisamente aquele em que recebi a notícia, depois, da morte de uma colega de trabalho, e amiga querida, a quem dedico tudo, com o seu nome atravessado no meu coração.

Imagem de entrada: Mona Lisa de Leonardo da Vinci

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