Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Marta Pereira da Costa

Marta Pereira da Costa inicia a sua formação musical no piano, com apenas quatro anos; aos oito, acrescenta aos estudos a guitarra clássica e, aos 18, arrisca (a bem de todos) na guitarra portuguesa. É ela a primeira guitarrista profissional de fado a nível mundial. E é nesta guitarra que, paralelamente a uma licenciatura em engenharia, encontra o instrumento que a identifica e a tornou num nome obrigatório da cena musical.

A acompanhar, no seu portfólio, já conta com nomes como Mário Pacheco, Mariza, Kátia Guerreiro, Camané e Carlos do Carmo. Incansável no aprimorar da sua técnica, no dedilhar das dozes cordas, em formação constante vai beber do know-how de inúmeros guitarristas: Carlos Gonçalves, Mário Pacheco, José Fontes Rocha, Ricardo Rocha, Paulo Parreira, Pedro Caldeira Cabral, Paulo Soares, Ricardo Parreira, António Parreira, Arménio de Melo.
Marta Pereira da Costa é atualmente a única mulher a tocar profissionalmente guitarra portuguesa no Fado, a nível mundial – a guitarra portuguesa sempre esteve associada ao homem como músico e demasiado presa ao Fado. Marta rompeu com essa tradição e apresentou uma nova estética para guitarra portuguesa, estética que viaja do Fado ao chorinho brasileiro, ou de uma morna à world music; sempre sem barreiras. Apresentando-se em diversas formações desde quinteto, composto por Guitarra Portuguesa, Guitarra Clássica, Contrabaixo, Piano (e/ou acordeão) e Percussão; ou em formações mais reduzidas como trio (composto por Guitarra Portuguesa, Guitarra Clássica e Contrabaixo); duo (composto por Piano e Guitarra Portuguesa), ou até mesmo a solo, Marta já ganhou o seu merecido reconhecimento como guitarrista singular que lhe valeu, em 2014, o “Prémio Instrumentista”, pela Fundação Amália Rodrigues. É com ela que hoje reflectimos sobre os seus últimos meses nas cordas da sua guitarra.

Se lhe pedisse para escolher uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(MPC):
(Risos!). Boa pergunta, eu diria Lá – 440hz, por ser uma frequência conhecida, confortável ao nosso ouvido. Foi um ano muito parado, calmo, caseiro, com poucas agitações.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente lhe era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-se?
(MPC):
Sim, sem dúvida que foi um lado positivo desta pandemia. Tempo. Tempo de sobra e que teve que ser bem aproveitado. Para além de conseguir estar em casa e dedicar-me aos meus filhos e ao bem-estar deles, o que nos uniu ainda mais e onde os vi crescer muito, pude também voltar a estudar, tentar melhorar a técnica, voltar a compor com calma e sem stress. Em duas semanas acabei quatro ideias, foi óptimo! Agora é tempo de pôr em prática essas ideias e novos projectos.

Como encarou e encara os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, se sentir activa?
(MPC):
Estive mais activa nas redes no primeiro confinamento e estava a fazer lives quase todas as semanas. Obrigava-me a trabalhar mais repertório e a manter-me focada e activa. Foi bom. Mas também cansativo. Depois parei para me focar num trabalho mais individual, de composição, de estudo e que já não dava para ser partilhado. Pelo meio também gravamos dois concertos em quinteto para a Embaixada de Portugal em Washington e parte da actuação passou também em streaming no “International Jazz Day” no mítico Blues Alley em Washington. Quando decidi apresentar o novo projecto em Duo Guitarra Portuguesa & Piano, decidimos voltar aos lives e partilhar os nossos ensaios às sexta-feiras. É uma maneira de nos mantermos em contacto com o público, o que é positivo para nós e acreditamos que é também positivo para quem nos ouve e vê.

Está a desenvolver músicas ou produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, pode levantar a ponta do véu?
(MPC):
Sim, estou com dois projectos em paralelo: a preparação do novo disco que é para ser feito com calma e sem pressas, e um projecto já pronto para ir para a estrada, em Duo, de Guitarra Portuguesa & Piano, um projecto inovador e pelo qual estou apaixonada. Já o estreámos em privado e o feedback foi muito bom. Agora o próximo passo é partilhá-lo com o público.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(MPC):
Ensaios sempre, há sempre muito trabalho a fazer e desenvolver. Tudo o resto é uma incerteza. Concertos que são marcados, adiados, e ficamos em standby. Como actuo essencialmente fora do país ainda é cedo para retomar a actividade e fazer planos. Os pedidos que vão aparecendo são incertos. Temos que ser pacientes e ir trabalhando no que podemos e procurar actuar mais perto e em Portugal.

Sente que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(MPC):
Acredito que sim, que alterou um pouco a perceção da opinião pública, na medida em que a arte em geral e a música em particular foi um setor que batalhou muito por manter presença junto do público através das redes sociais, com inúmeras iniciativas que ajudaram, de certa forma, a passar melhor o tempo em que estivemos em casa. Mas sobretudo, espero que esta pandemia tenha ajudado a mostrar que a música emprega muita gente, para além dos músicos, artistas ou cantores que conhecemos, são milhares de pessoas que dependem desta indústria e ficou também mais claro que neste setor as condições de trabalho são bastante precárias, infelizmente. Tenho esperança que esta pandemia tenha ajudado a alertar e sensibilizar para esta situação, que tem de mudar.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a sua rotina de músico e como vê o futuro do seu sector a partir destas três palavras?
(MPC):
O futuro vejo com otimismo! Gradualmente, aqui e lá fora, estamos a retomar a normalidade e com isso chegam também os palcos, que são para mim a melhor fonte de criatividade. Deixaria a palavra produção para promotores, autarquias, e agentes culturais em geral, incentivando-os a que promovam novas produções e convidem os artistas (tantos e tão bons que Portugal tem) a dar vida a esses projetos.

Quão desafiante se tornou este último ano no seu percurso enquanto músico? Como geriu a falta física dos seus pares, ao seu lado? O que mais mudou na sua perspectiva sobre o seu trabalho?
(MPC):
Foi muito desafiante. A adrenalina e o ritmo a que estava habituada, de repente foi ao zero, e por muito tempo e tempo indeterminado. Tive que me reinventar para não ir abaixo ou desanimar. O estudo também foi incerto: alturas mais motivada e focada, outras pela falta de objectivo ou alguma previsão de datas para concretizar o trabalho acabava por afectar-me mesmo que lutasse muito para que não acontecesse, cheguei a ter a guitarra de lado mais de 1 mês.. nunca tinha acontecido. O exercício físico foi essencial para o meu bem-estar: pilates, yoga e PT. Tentei manter sempre a minha rotina e isso deu-me estabilidade. Mas noto que a produtividade baixou muito. Também tive que saber aceitar e permitir-me funcionar a uma rotação mais baixa. O trabalho passou a ser muito mais solitário e também senti muitas saudades de me juntar para ensaiar com toda a banda, de me encontrar com os técnicos e com toda a equipa com quem trabalho. As poucas vezes que nos juntamos, senti uma entrega tão especial e incrível entre todos, estávamos mesmo felizes por voltar a tocar e estar juntos. Como plano B, tive que me dedicar a dar aulas. Mas as saudades de palco são enormes, é como um vício que nos alimenta. Felizmente já vou retomando com alguns eventos privados e sinto-me uma privilegiada por todas as emoções que sinto em cima de um palco, as que vivo ao tocar, as que recebo do público e dos músicos que tocam comigo. É mágico e incrível. Não seria tão feliz a fazer outra coisa na vida. Acredito que vamos superar esta fase e vamos ter oportunidade de nos reerguermos com mais vontade e com tudo para dar. E, seguramente, também com um público cheio de saudades e com ainda mais vontade de nos ouvir. •

+ Marta Pereira da Costa
© Fotografia: DR.

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