Johannes Vermeer foi o pintor da claridade, quase dolorosa e mesmo límpida, como uma água que corre de fonte segura e conhecida, daquelas que provêm de nascentes próximas da nossa casa.
Talvez Vermeer, que pintou muito pouco, seja essencialmente conhecido pelas “cenas” decorridas no interior de casas, nas quais se espraia sempre uma claridade mais ou menos sobrenatural, que as janelas, assumidas dentro do quadro ou simplesmente prenunciadas, poderiam justificar: provindo, então, a luz do exterior. Mas não será certamente por acaso que se ousa dizer que “os olhos são as janelas da alma”, logo, as janelas serão, à semelhança das portas, pórticos e limiares. Assim, o interior e o exterior passam, diria, entre si, e encaram-se. Se pensarmos bem, o exterior só existe porque há interior, e vice-versa, assim como a esquerda só existe porque há direita, e vice-versa, e poderíamos continuar. No entanto, é certo que existem pórticos e limiares, lugares por excelência de atravessamento, e, para os delimitar, constroem-se paredes opacas, que cada vez mais, actualmente, são substituídas por matérias transparentes, em que se destaca o uso do vidro. A sociedade da transparência em que vivemos hoje tem, ainda, no vidro o seu símbolo mais premente; mas uma coisa é delimitar as janelas e as portas, outra, necessariamente diferente, é tornar as superfícies permeáveis na sua quase totalidade. Situação que, inevitavelmente, traz consequências, e que não são apenas metafóricas.
Para lá da exposição ostensiva que resulta desta situação, denunciada por muitos como uma das chagas da contemporaneidade, e ainda a sobrepor-se à vulnerabilidade que nos intrinsecamente constitui enquanto humanos, perfila-se o tempo em que vivemos como a era, julgo, da grande profundidade psíquica. Veja-se que a par das sondagens dos mares e da Terra, já percorridos e mapeados até à exaustão, vão agora as viagens de passeio à Lua e a imersão no cérebro equacionada pelas neurociências. Todavia, será certamente diferente dizer “alma” ou/e “cérebro”, porque àquela corresponde um invisível de facto, e daquele pretende-se dar a ver o imponderável; e mesmo se se pesassem, a alma e o cérebro, teriam de obedecer a critérios díspares. E os olhos? Seriam agora películas equívocas que dão para o intrincado sistema nervoso? Ou não possuem, pura e simplesmente, valor heurístico no que às metáforas concerne? Também se diz que “o que os olhos não vêem, o coração não sente”; mas, o coração: sente?
Vermeer não toma geralmente como central a janela nas suas pinturas, ou melhor, embora ela seja imprescindível já que se torna um foco que jorra luminosidade, vem como, digamos, enquadramento, e não como a cena que se oferece ao olhar. Pese embora a sua posição de suposta secundariedade, a janela é, para o pintor, estruturante, e não no sentido apenas de foco que jorra luminosidade, mas também porque é pórtico e limiar, laborando na matéria de, digamos, pressentimentos. Creio que, agora, estamos para cá da nossa janela e para lá do nosso olhar: tanto porque se espera que o interior ilumine quase tudo, como porque se deseja ver de olhos bem fechados. Talvez não devamos esquecer-nos de abrir a janela em certas ocasiões e levar a sério os pressentimentos que daí provêm…