Jesus, o filho: com Caravaggio

UMA ANUNCIAÇÃO, UM NASCIMENTO, UMA VIDA, UMA CRUCIFICAÇÃO, UMA DÚVIDA, UM CALENDÁRIO…

Uma “família” nasce sempre de dois diferentes que não partilham a consanguinidade: e esta é uma anunciação inequívoca, uma evidência derradeira, uma premissa clara. Assim, a familiaridade nasce da diferença, e do desconhecido, e do mistério: é esta a natureza do amor. O amor junta o que por essência se separa e permanece exterior: que eu não consigo, de nenhuma forma, incorporar, embora possa beijar e abraçar e acariciar e penetrar. O amor é uma vertigem que começa na carne e se dá na forma derradeira de um nascimento. Nascer é uma oportunidade única, e que vem para sempre: porque se nascemos, também nascemos, e antes de mais e até sobretudo, para os outros e pelos outros. Ninguém se vê nascer: é-nos contado o nosso nascimento por outras pessoas, que nos agarram, que nos estreitam, que nos alimentam, que nos amparam, que nos iniciam. Julgo que se torna muito importante não nos esquecermos nunca desta anunciação – da diferença, nem deste nascimento – em que não nos vemos, já que são a anunciação e o nascimento o que nos introduz, às cegas, no mundo: pelo que existe à partida um tecido comum em que nos encastramos através de um acolhimento radical.

Uma “vida” é um caminho em movimento e não um teatro de petrificações. Viver significa, mesmo quando o mundo parece uma assombração, continuar: dormindo e acordando de novo. Pelo que viver é, também, re-viver: seja através da repetição proporcionada pelo quotidiano, seja pela memória que possibilita que uma história seja contada. Ninguém tem o direito a ser condenado e ninguém deveria condenar-se, porque viver é também regeneração. O amor absolve: após juntar o que por essência se separa e permanece exterior, vem comprovar-se depois como um milagre contínuo, de onde não se ausenta a ideia de perdão. Perdoar, o que o amor possibilita, apesar dos processos e situações irreversíveis, implica criar as ocasiões para permanecer em abertura infinita. Esta abertura infinita não deve angustiar-nos, já que se vai selando através do compromisso. 

O “fim” prova-nos que somos, e que vivemos, no tempo: este abraça-nos, banha-nos, inunda-nos, e possibilita que se dê a maturidade. Existe uma teoria da/s semelhança/s que permanece bastante debilitada nos dias correntes: aquela a oferecer-nos o espelho das estações da vida, que é concomitante à ideia de contiguidade. Caravaggio, que não por acaso abre, e sela, esta reflexão, pintou a partir das semelhanças.

Que tudo quanto digo possa, eventualmente, ser matéria para pensar que apenas se acreditará, vendo, impondo, portanto, uma dúvida, é uma inevitabilidade que deve intimar-nos a fazer prevalecer o tempo do calendário, e não o do relógio. Essa prevalência irá ajudar-nos a distinguir a diferença anunciada uma, e outra vez; irá possibilitar-nos dialogar com o Outro no sentido de recapturar a idade do nosso nascimento; irá permitir-nos viver realmente, amando e perdoando, essencialmente.

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