Kristinn Nicolai nasceu na Islândia, onde mora algumas vezes, mas deambula entre a Europa, a Ásia e já expôs também na América. Agora fá-lo na Galeria Miguel Marcos, em Barcelona.
Algures no tempo tive um sonho, vívido. Um vulto negro aproximava-se de mim pelas costas, eu encolhia-me com muito medo, como se me encarquilhasse, mas, enfim, o vulto abraçava-me de forma reconfortante, e senti que me pegava ao colo. Logo a seguir, quis a minha cabeça. Então, lembrei-me de “O Mestre” de Ana Hatherly. Mas este foi um sonho, nada mais além de um sonho. Já a pintura de Nicolai é efectiva. “CirCulo” foi em 2015, “Power of the Pussy” foi em 2019 e agora, em 2022, “Studies in Pussy’Ism”: exposições, todas elas, na Galeria Miguel Marcos, em Barcelona. No enquadramento reflexivo que é feito pela galeria pode realmente conferir-se a importância que o corpo feminino, e a mulher, representam para Nicolai: onde encontra inspiração, que estuda, que analisa constantemente. Os seus quadros pintados a óleo são negros profundos, são reais escarpas, não exactamente de vertigem, mas antes de algo que no corpo se eleva apesar de uma ambiência que nos supostamente ancora na sujidade. Sim: a sua pintura opera nos desdobramentos, sem dividir, mostrando as cisões, sem rechaçar a complexidade, vindo a realidade nua e crua, mas também, e muito, o invólucro etéreo que a enforma e se propaga.
Gostaria agora de destacar este óleo sobre tela, “Sem título” e que provém do ano 2021: porque o intuo como uma paragem, ou seja, como algo que está encastrado no tempo. Desde logo ressalta a intensa qualidade de desenhador: um traço firme, cerebral quanto baste para elaborar de memória, com noção da geometria, logo, da profundidade, com exacta percepção, também, da medida dos corpos. O desenho sempre o considerei a modulação interior, pessoal, da forma como cada um/a apreende o mundo, como se fosse/seja um diagrama invisível que se sobrepõe mentalmente ao que se vê; e o que dá forma, por outro lado, a tudo quanto habita dentro de nós e se rebate na realidade. Num primeiro olhar sobre este “Sem título” podia pensar-se que se trata de um homem e de duas mulheres; no entanto, após conviver com a pintura, instalou-se outro entendimento – um homem e uma mulher, com esta a vir desdobrada, e a localizar, por um lado, o sexo, por outro, o coração. Sendo o retrato aparentemente cru do encontro sexual, eis que Nicolai providenciou, dando a ver, quanto a mim, a união da carne e do espírito. É feita de ternura infinita a mão com que o homem toca o rosto adorado daquela mulher que, quanto mais amada e afagada – no rosto e no coração, também mais disponível se mostra, sexualmente.
Esta pintura, para mim, e no meio das obras presentes em “Studies in Pussy’Ism”, é uma espécie de súmula e, simultaneamente, um real altar onde se desfiam as contas do rosário da paixão e do amor. O rosto adorado daquela mulher é de onde brota, também, a entrega total por parte do homem que, assim, vê a sua identidade em abertura.
Exposição patente na Galeria Miguel Marcos – Carrer de los Jonqueres, 10, até Setembro deste ano.