Pintada por Giotto di Bondone nos inícios do século XIV, “A Lamentação” faz parte do ciclo dedicado à vida de Cristo que se encontra no interior da Capela dos Scrovegni, em Pádua.
Quando os anjos não estavam doentes faziam como Giotto os pintou: voavam e sentiam; e não é preciso ser-se cristão para entender que os anjos têm asas e voam e sentem. Determinam-se dois planos: terreno e celestial, adultos em terra e anjos no ar. Mas todos sofrem pela perda do ser querido. E é precisamente isso que devíamos estar a fazer: a chorar a perda. Por outro lado, há que viver o melhor possível, defendendo a alegria e a ocasião de passarmos pela Terra uma única vez, devendo-nos entregar à vida e aos dias como se fossem os últimos, mas também os primeiros. Giotto marca a passagem de um regime de imagens – medieval, para o que viria a ser o Renascimento, com a configuração de uma representação considerada realista. Mas realista em que termos? Nos termos em que o que se pinta pode encontrar paralelismo no que nos rodeia; mas o que se pintou por Giotto aqui, e por tantos pintores em outras ocasiões, sendo ainda alvo da representação por escultores, foram descrições antigas, passos dos evangelhos da Bíblia, registos da vida de Cristo. Perante tal realidade, qual o realismo efectivo que podemos encontrar em “A Lamentação”?
Jesus nasceu ao tempo do Império Romano – na Antiguidade Clássica, e veio com a sua Palavra e com a sua Espada acolher os injustiçados e denunciar os algozes. Havia ricos e pobres, senhores e escravos: tal como actualmente. Podemos, então, concluir que o Mundo sempre foi desigual: ontem, como hoje. Todavia, é diferente para ontem – quando Jesus nasceu, e para hoje – mesmo que a sua mensagem continue a ser passível de actualização. Porque o Império Romano dominava territorialmente numa parcela da Terra, concretamente, em torno do mar Mediterrâneo – o chamado Mare Nostrum, e estava longe de alastrar pela esfera terrestre como praga. Agora as coisas são diferentes: a Terra está integralmente “colonizada”, existe sobrepovoamento, bem como formas diversas de contracção temporal, destacando-se nestas a crosta etérea formada pelos meios digitais. Portanto, observa-se uma claustrofobia evidente 2022 anos após o nascimento de Cristo, apesar de amiúde se apresentar este tempo como o da Liberdade, e o do livre-arbítrio.
Mas há, sim, há, uma invariante, em que também Cristo se inscreve e que é, como o foi sempre, sim, a única ocasião em que podem processar-se os milagres: a necessidade de verdade. A necessidade de verdade implica o conhecimento e a oferenda de si, tendo repercussões tanto sociais, como íntimas. Apenas através da verdade, a que no núcleo efectivo se aloja como necessidade óbvia e genuína, pode desabrochar e alastrar o amor. Estou em crer que todo o ser humano partilha esta necessidade de verdade, mesmo se proliferam agora inúmeros mecanismos e estratégias de sepultamento, aspergindo-se também de várias formas as experiências nucleares e, por inerência, atacando-se tudo quanto apresenta consistência: tanto a obra de arte, como a integridade do sujeito, ou seja, tudo quanto são os rostos visíveis desse núcleo efectivo, composto essencialmente de um ar de qualidade respirável.