Capítulo Um/1
Por fim, neste Capítulo Um/1 da entrevista, deixando o Zero/0 atrás terminado, agarramos música a música – os títulos de cada uma – deste viciante trabalho como mote para uma conversa genuinamente informal, num jogo de palavras da música 1 à música 10, mais aquela extra.
Empty Screen / São geração analógica que se “adaptou” ao digital. Saudades das TV’s sem comandos ou nada como a infindável oferta de pacotes smart TV’s?
JC: Não tenho saudades de ser o ‘comando humano’ da televisão da casa da minha mãe… mas tenho saudades de falar e discutir sobre o que tinha acontecido na televisão no dia anterior. Agora é impossível fazer isso. Com tantos canais e serviços de streaming, é impossível estar sempre actualizada nos filmes e séries.
RJ: Não tenho grandes saudosismos, em geral. E muito menos de ter poucas opções, iguais para todos. Mas acho importante ter-se noção real, prática, palpável das coisas. E nisso o analógico era mais rico que o digital. Mas noutras coisas o digital é muito fascinante, como a possibilidade de ter centenas de sintetizadores dentro de uma consola de jogos…
HT: Saudades, algumas, sim. O excesso de oferta leva-nos, talvez, a dispersar e há mais dificuldade em nos concentrarmos em algo, em ter tempo e usufruir com qualidade do mesmo. Por outro lado, o digital também nos trouxe uma panóplia de ferramentas bastante úteis, no universo pessoal e profissional.
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One Last Book Into The Fire / Num universo onde todos os livros passam a estar em modo “Kindle” é-vos dada a hipótese de salvarem um único livro físico. Que livro salvavam e porquê?
JC: O lado bom das sessões de fisioterapia é que estou novamente a ganhar o hábito da leitura. No entanto, o livro que salvaria não seria pelo impacto da história em si, mas pela beleza gráfica e pela encadernação. Infelizmente, livros deste calibre estão longe do meu poder de compra e são muitos para escolher um e eu tenho um problema em tomar decisões…
RJ: O “On the road”, na sua versão em inglês, que é provavelmente o livro mais ‘físico’ que alguma vez li e, também por isso, perderia sentido lido num ecrã.
HT: O “Livro do Desassossego”. Num kindle tenho a certeza que iria perder a enorme força que tem. Gosto de virar o olhar e contemplar o livro na estante e, de vez em quando, voltar a abrir e re-sublinhar o que já sublinhei (a lápis, sempre a lápis).
Living In The Trenches / Que vêem como as trincheiras neste século e o que vos fez ir buscar este termo tão associado à Primeira G.G.? Analogia ou metáfora?
RJ: Metáfora. Não me atreveria a falar de guerra nesta minha posição de conforto. Na verdade, o ponto de partida desta letra surgiu-me até antes da actual guerra na Ucrânia, a propósito de um trabalho que fiz, em 2021, com uma companhia teatral de Coimbra, chamada Trincheira. A música fala de estar pronto para arregaçar as mangas, quando as causas são justas e quando vemos o nosso esforço a não ser valorizado. E isso sentiu-se bastante na área cultural, durante a pandemia.
So Many Ways / Hoje, há tantas formas de se gravar um álbum. Tornou-se mais fácil e rápido, o processo. Vendo documentários como “Sound City” (D. Grohl) ou um “Get Back” (The Beatles) assistimos ao gravar com fita naquelas régies. Não propondo o instalar de um regresso ao passado, se vos fosse dada a oportunidade de um álbum gravado em fita, agarravam ou não fazia sentido?
JC: Obviamente. Como disse anteriormente, adoro tudo o que seja antigo e obsoleto. O problema seria o preço da fita. Precisaríamos de muita…
RJ: Não me recusaria a experimentar… Mas acho que a gravação digital agiliza muita coisa.
HT: Desde que não tivesse de ser eu a editar tudo (risos)… Aquilo deve ser uma dor de cabeça. Se em digital já é o que é, o que seria com fita. Se iria soar melhor, duvido; mas ao menos não morria estúpido.
No-Show / Têm surgido várias vozes a alertar para a rápida evolução da IA e o que daí pode advir. A IA já cria músicas como se fossem sonoridades perdidas dos Beatles. Como vêem estas criações? É um no-show para a IA e há que ter limites? Receio ou tranquilos porque “ainda” controlamos isto tudo?
JC: Não me sinto tranquila no futuro que nos espera relativamente à IA. Quando se chegar ao ponto de não saber se o que estás a ler, ver e ouvir é real, a Humanidade terá um problema muito sério para resolver. Cada vez mais o título do segundo álbum dos Blur ressoa na minha cabeça: Modern Life is Rubbish.
RJ: Os limites, sempre os limites… Para mim é das coisas mais difíceis, encontrar limites virtuosos e perfeitos.
HT: Para já são exercícios engraçados que têm a sua piada, esperando que não passe disso. Como todas as novas tecnologias, se cair nas mãos erradas há sempre perigos que não conseguimos medir.
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The Rabbit Hole / Alguma alusão à metáfora presente em Carroll de algo que nos transporta para um estado ou situação surreal? Onde iriam parar os Birds se acaso mergulhassem down the Rabbit Hole?
JC: A realidade vivida nestas últimas décadas já foi um pouco surreal…
RJ: O mergulho na criação deste disco foi uma espécie de salto no escuro, por isso, acho que a resposta poderia ser que iríamos parar ao “Ones & Zeros”. De qualquer modo, a música é escrita na perspectiva de uma personagem que cai num estado (físico e psicológico) em que já não consegue saber quem é.
HT: Já mergulhámos e agora andamos a nadar ao sabor da corrente “Ones & Zeros”.
It Doesn’t Sound Real / Em estúdio, há toda uma panóplia de instrumentos digitais, do mundo digital/virtual à vossa disposição. Sabemos que há quem opte por usar esses mesmos para gravar. Tocar o instrumento real e concreto ainda é o que sempre vence ou tornou-se complementar e natural o digital?
RJ: Em discos anteriores já usámos mais ferramentas digitais, talvez por ainda estarmos à procura de experimentar instrumentos e ferramentas que não tínhamos fisicamente à nossa disposição. Neste álbum tentámos reduzir isso ao máximo, usando apenas os instrumentos que tocamos ao vivo e, mesmo usando alguns apenas em estúdio, a maioria foram reais, como percussões e piano acústico. Ambas as abordagens são válidas, mas nesta fase fez-nos mais sentido buscar um som orgânico e humano, em contraste com algumas temáticas das letras e a imagem.
21st Century Heroes / Recorridos 24 anos do século XXI (há que contar com o ano zero), se hoje vos pedisse um herói (provisório) – ou heróis – para este século (que já se tenha destacado de forma indelével), quem escolheriam e porquê?
JC: Os heróis são uma espécie em vias de extinção… Ainda não se avistou um neste século…
RJ: Não tenho heróis, em nenhuma área. Mas, pensando no campo da música, os dois músicos que talvez mais tenha acompanhado na última década, para não ir mais atrás, foram o Jack Cooper (Mazes, Ultimate Painting, Modern Nature) e o Andrew Savage (Teenage Cool Kids, Parquet Courts).
HT: Heróis?… Somos todos nós por estarmos a aguentar a insanidade deste século XXI.
Same Time, Same Place / Instalou-se a IA. Estamos sob o domínio total dos 1’s e 0’s da computação, analógico é já um mito. Porém, há uma possibilidade única e limitada de regressarmos à era analógica, a um mesmo sítio, numa mesma hora. Para onde iriam regressar e usufruir desse luxo, e porquê?
RJ: Talvez regressasse àqueles verões intermináveis em que, perante o inevitável tédio, se tinha de inventar o que fazer. E uma das ocupações era passar tardes a ouvir rádio, sempre com o dedo no REC, para gravar em cassete as músicas que mais gostava.
JC: A minha primeira resposta é idêntica à do Jerónimo. Contudo, posso também escolher aquelas saídas à noite, quando íamos tomar uns copos com os amigos, ver um concerto e não havia um telemóvel (o teu e os das pessoas à tua volta) para te distrair do que estava a passar. As coisas aconteciam espontaneamente e as conversas eram mais intensas. Vivias o momento.
HT: Voltava ao período em que não tínhamos a “obrigação” de estarmos sempre disponíveis 24h por dia. Acabava por ser um descanso a que hoje dou um valor sem par. O mesmo período em que não era preciso um telemóvel para ir ter com os amigos. Tínhamos um sítio e acabávamos todos por ir aparecendo.
Behind The Sun / Aquelas caminhadas, na alta madrugada, que retratam nesta música, após uma daquelas noites bem vividas, será sempre analógica entre vós e a vossa consciência, ou o telemóvel no bolso tornou-se ferramenta de auxílio à reflexão?
RJ: Caminhadas dessas a olhar para o telemóvel têm tudo para dar (ainda mais) para o torto… E noites como essas, “bem vividas”, dispensam totalmente o telemóvel. Agora, que é uma bela ferramenta ter boa parte do mundo no bolso, lá isso é…
HT: Essas noites com telemóvel não têm como existir…
A Way To Think It Over / Música bónus para quem vos compra, em formato físico, este novo trabalho. Dois pontos: Quanto tempo é que acham que vai demorar até alguém a colocar, à revelia, numa plataforma virtual? O bónus foi uma forma de pensarem no como acicatar-nos a ter o formato físico?
RJ: Mesmo que não seja por nosso intermédio é possível que essa faixa vá parar à internet, como tudo, aliás… Mas quem compra um disco é porque gosta do formato físico, porque o valoriza, porque o tem agarrado à memória de um concerto ou de um outro momento. Adicionar este bónus foi uma forma de premiar quem leva para casa um CD ou um vinyl. E também de dar vida a uma música que não queríamos deixar na gaveta, mas que não se encaixava muito bem no alinhamento de 10 músicas do álbum.
“Ones & Zeros” é um álbum obrigatório se ainda não o descobriu, é um álbum para continuar a tocar se já o tem em formato físico ou em playlist. É para ir além da música, é para degustação visual, sonora, física e sensorial. É para ver, ouvir, dançar e sentir na pele.
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Próximas datas já anunciadas:
16/09 – Teatro Municipal da Covilhã, Covilhã.
30/09 – Estreia do Vídeo-Álbum, Casa do Cinema, Coimbra.
12/10 – Fnac Chiado, Lisboa.
13/10 – CAE. Portalegre.
14/10 – Casa da Cultura, Setúbal.
26/10 – Cafeteria I Vegazana, Léon (ES).
27/10 – Sala Sanagustin, Azpeitia (ES).
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