Francisco de Goya, que nos deu alguns caprichos, foi também o construtor dos “Desastres da Guerra”: hoje, e aqui, retomados.
Adquirida a série “Desastres da Guerra” pela Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, de Madrid, foi feita uma primeira edição em 1863 após a preparação das lâminas por terceiros, indiciando o facto eventual de Goya não ter previsto que fosse publicável. Como tem sido ressaltado, apesar de terem sido gravadas entre 1810 e possivelmente 1815, e por isso concordarem também, grosso modo, com o período em que a Guerra Peninsular decorreu – entre 1808 e 1814, a mesma a que o pintor assistiu, estas imagens não são um relato histórico exaustivo – pese embora os adereços com que as figuras humanas vêm representadas. Porque todo e qualquer tempo tem uma visualidade concreta e situável, relacionada com a cultura material que a especifica, é natural que as figuras humanas constantes nos “Desastres da Guerra” nos remetam para o século XIX; todavia, também se identifica nesta série um amplo despojamento, o mesmo que se responsabiliza por conferir às cerca de 80 imagens o cunho da universalidade.
O que se passa, portanto, é que Francisco de Goya é contra a guerra, em todas as frentes. Como Goya sentiu no seu íntimo e deixou gravado, e chegou até nós, a guerra escuda-se num único móbil: aniquilar o/a semelhante. A fotografia surgiria depois dos “Desastres da Guerra”, na década seguinte do mesmo século: e sabe-se como terá interferido no fazer da pintura, mas talvez não tanto quanto ao que diz respeito ao desenho. Qualquer artista sabe que tem de ter um diagrama de apreensão do visível, que submete a uma passagem entre o interior e o exterior; esses diagramas são sobretudo aferíveis através do desenho. Portanto, há desenhos de linhas retas, há desenhos de carnes esquartejadas, há-os como se tratasse da ideia de espigas ao vento ou outros que parecem cabelos de mulher molhados pelo sal do mar: trata-se sempre de uma intimidade, de uma transformação interior relativa ao visível. E aqui estão os “Tristes presentimientos de lo que ha de acontecer”, a primeira estampa da série de Francisco de Goya.
E o que se vê aqui? Porque na arte, que é também a maneira certeira, tanto de traduzir, como de circunscrever e de dar a ver a realidade, é preciso ver o que lá está, na obra: aqui vê-se um ser humano só e descarnado rodeado pela noite-escuridão, ou, se assim o entendermos, a noite-manto que deglute um ser humano só e descarnado. O trabalho dos símbolos anda tresmalhado há tempo demasiado – para a desavença entre esse trabalho e o entendimento humano muito têm contribuído o acaso das semelhanças, bem como a destruição do ritmo. Assim, a noite-escuridão-manto é aqui com a maior probabilidade o equivalente ao sono da razão, aliás, precisamente em alusão a um dos caprichos de Goya – “O Sono da Razão Produz Monstros”, datado dos últimos anos do século XVIII. Mas, agora, aqui estão os “Tristes presentimientos de lo que ha de acontecer”: à distância de 214 a 209 anos, irrompendo na noite-escuridão-manto que vai do ano de 2019 ao de 2024, aquele em que nos encontramos. Não temos todas as razões alinhadas para uma esperança cristalina, agora; mas temos, à semelhança de Francisco de Goya, o dever de testemunhar.