SEMEAR, o pop-up gastronómico onde se colheu da terra ao mar {01}

O Areias do Seixo, refúgio na Natureza localizado no concelho de Torres Vedras, desafiou, durante três dias, a criatividade de 12 chefs, a contar com o anfitrião, e barmans. A este evento de partilha juntaram-se produtores da região Oeste e mentores de projectos que vão dar que falar.  

“O SEMEAR nasceu de uma vontade de criar um momento de encontro gastronómico entre pessoas que partilham uma enorme paixão pelo mar e pela terra e que olham para uma cozinha autêntica e genuína, mas, acima de tudo, sensível para com a utilização dos recursos e dos produtos locais.” A explicação é dada por Gonçalo Alves a respeito da estreia do pop-up gastronómico que decorreu no fim-de-semana de 28 a 30 de Junho no Areias do Seixo. Para o co-fundador deste alojamento composto por hotel e villas, com localização próxima da Praia da Mexilhoeira, em Santa Cruz, no concelho de Torres Vedras, “no final do evento, o entusiasmo de todos os participantes demonstrou aquilo que acreditamos ter sido o sucesso desta primeira edição”.

Para que tudo acontecesse, foi preciso alinhar nomes, coordenar equipas, organizar o calendário, por forma a materializar este pop-up gastronómico. Márcio Baltasar, nome ainda associado ao Ocean, restaurante do hotel Vila Vita Parc, em Lagoa no Algarve, e já com outros projectos em mãos do outro lado do Atlântico e futuramente por cá, e Rui Madeira, director do departamento de Food & Beverage (F&B) do Areias do Seixo, desafiaram Gonçalo Alves a dar azo ao SEMEAR. “Fiz a matriz e os meetings iniciais, determinamos timings para tomar decisões, pedir pratos e menus, fazer o rastreio de produtos”, começa por explicar o chef de pastelaria Márcio Baltasar, com base na experiência de outros eventos, enfatizando a experiência de quem trabalha neste hotel de Santa Cruz, nomeadamente na vertente dos casamentos. “Foi um casamento, mas com chefs e não houve noivas.” 

A coordenação dos trabalhos em campo esteve nas mãos de Rui Madeira “e todos estiveram muito empenhados”, admite Márcio Baltasar. O exímio pasteleiro reuniu “os meus amigos, pessoas que admiro, em quem acredito, de diferentes valências, fortaleci a minha amizade com o pessoal do Areias do Seixo e com o Gonçalo [Alves], com os chefs, e trabalhei com produtos que não tinha tido a oportunidade de trabalhar”.

No cartaz dos chefs constaram nomes emergentes: João Narigueta, chef dos restaurantes Poda e Híbrido, respectivamente, de Montemor-o-Novo e Évora, no Alentejo; Rui Sequeira, chef do Alameda, Monky e Karpa, em Faro, Algarve; David Jesus, chef do Seiva, em Leça da Palmeira, no concelho de Matosinhos. Sem esquecer o anfitrião, António Pega. Somaram-se os veteranos Rodrigo Castelo, chef e proprietário do Ó Balcão, em Santarém, Paulo Alves, chef do sushi bar do Praia no Parque, e André Lança Cordeiro, chef do Essencial, ambos em Lisboa. O objectivo consistiu em aproveitar o que havia na horta, a mais-valia no compromisso com a sustentabilidade, factor preponderante no dia-a-dia do Areias do Seixo.

Os escanções Daniel Silva e Rui Madeira, e os barmans Wilson Pires e Fábio Ramos

Sem mais delongas, vamos aos jantares e ao almoço de domingo, onde o vinho também marcou presença. Rui Madeira seleccionou referências vínicas “de baixa intervenção, que espelham muito a sua identidade”, as quais serviu com o profissionalismo de Daniel Silva, escanção do restaurante Essencial.

A cavala, o lúcio-perca, a raia e a beringela: o primeiro dia do SEMEAR

O SEMEAR traduziu-se num fim-de-semana em que “a partilha com todos os chefs, o convívio entre a equipa, a relação próxima durante todo o evento com todos os participantes foi, na minha opinião, a maior alegria do SEMEAR”, sublinha Rui Madeira. No dia 28 de Junho, a festa começou com as boas-vindas de Gonçalo Alves e Marta Fonseca, os mentores do Areias do Seixo. 

A equipa de cozinha do primeiro jantar do SEMEAR

De copo na mão, Hugo Benavente, barman anfitrião, transformou tomate colhido na horta do Areias do Seixo e mezcal num refrescante cocktail de boas-vindas. Do Algarve diretamente para a região Oeste, a dupla Wilson Pires, um dos mentores do projecto Verso, e Fábio Ramos serviu a dupla Xerez (fortificado produzido na região da Andaluzia, na vizinha Espanha) e Moscatel Roxo de Setúbal, um cocktail sério e gastronómico. Logo ali, junto ao bar e de lareira acesa, enquanto a copiosa chuva deixava um rasto de cinzento lá fora, fez-se o desfile dos snacks, uma espécie de apresentação de cada chef, com as vozes e as sonoridades de Marta Fonseca, no acordeão, e Nuno Trindade, na guitarra. 

À mesa do restaurante, contíguo ao bar, o chef anfitrião, António Pega, deu primazia ao peixe e aos vegetais colhidos na horta, em honra da simplicidade no prato. Já João Narigueta falou sobre os produtos de Montemor-o-Novo, concelho agrícola abundante em pequenos produtores biológicos, os quais o chef incentiva na produção de hortícolas, deixando transparecer a importância de incluir peixe do rio nas ementas dos restaurantes, bem como a paixão por livros de cozinha antigos, como o “Arte de Cozinha”, do século XVII, da autoria de Domingos Rodrigues, mestre cozinheiro da Casa Real, e pelos fermentados.

Rui Sequeira homenageou o Algarve, com a cataplana em tartelete e uma interpretação da raia alhada à moda de Olhão. Alinhado com a filosofia do Seiva, David Jesus enalteceu os hortícolas em detrimento da carne, com destaque para a beringela com especiarias.

A sobremesa de abóbora com a assinatura do chef Márcio Baltasar

Para a sobremesa, Márcio Baltasar entrou em cena com “memórias do tempo que aqui estive”. Uma abóbora do horta do Areias do Seixo serviu para sonhos de abóbora acompanhados de pedaços de abóbora assada e praliné feito a partir de sementes do fruto da abobreira. “Dos ovos das galinhas daqui” fez um pudim, com caramelo vegetal feito a partir de aloe vera.

As caracoletas, a cozinha asiática, a falsa cabidela e os pézinhos: o segundo dia do SEMEAR

“Começámos este projecto pela horta, há 17 anos”, ou seja, em 2007, lembrou Gonçalo Alves aquando da abertura do SEMEAR. À época, pouco se ouvia falar sobre permacultura e agricultura regenerativa, e já ambos se preocuparam em contribuir para o ecossistema agrícola. “Naquela altura chamamos-lhe da terra ao prato”, avança Gonçalo Alves, em detrimento à posterior tendência mundial do farm to table, ainda para mais numa época em que ainda não se falava da viabilidade das hortas numa unidade hoteleira. Esta aposta na horta aconteceu “por paixão e por entusiasmo de iniciar um conceito de km 0, onde parte significativa da produção hortícola pudesse ser garantida pela nossa horta de produção própria. Ficamos felizes por sentir que estas nossas opções, talvez tomadas antes de tantos outros, tenham feito caminho e que as hortas sejam hoje palcos importantes para a visibilidade de tantos restaurantes e hotéis nacionais e internacionais”, explica o co-proprietário do Areias do Seixo.

A sazonalidade é garantida por Luca Caffetani. O hortelão, natural de de Parma, em Itália, com experiência em agricultura biológica em Itália e na América, tem em mãos um vasto jardim, onde os herbicidas não entram e do qual dois terços é ocupado por “uma floresta comestível”. As honras dos pratos do restaurante do Areias do Seixo são feitas graças à agricultura sintrópica constituída por árvores perenes, aromáticas, para infusões e para a cozinha, entre outras espécies. Quantos às galinhas, além de darem ovos, contribuem para a fertilização do solo, componente complementada com a compostagem da sobra dos produtos utilizados na cozinha. 

O círculo de fogo deu início ao segundo jantar do pop-up gastronómico do Areias do Seixo

Bem perto dali, no círculo do fogo do Areias do Seixo, sob o céu tranquilo, o final de tarde de 29 de Junho começou com música a acompanhar. Serviram-se os cocktails de Vinho Madeira, sumo de melancia e mezcal, da dupla Wilson Pires e Fábio Ramos, e o de aguardente vínica DOC Lourinhã, com xarope de manjericão-limão, de Hugo Benavente. 

À semelhança da noite anterior, houve um desfile de snacks com a assinatura dos chefs, momento em que António Pega, Paulo Alves, Rodrigo Castelo e André Lança Cordeiro mostraram o cunho de cada um na cozinha, neste segundo do pop-up gastronómico SEMEAR. Para o jantar, no restaurante do Areias do Seixo, António Pega surpreendeu, uma vez mais, com os hortícolas do hotel, enquanto Paulo Alves juntou a barriga de atum da costa, com sabores da cozinha asiática, a praia deste chef, que remete a preferência para a delicadeza do peixe. 

Rodrigo Castelo fez das memórias de infância o prato deste segundo do SEMEAR, com produto das lezírias do Ribatejo e os aromas do bosque, em fermentados, outras das técnicas aprimoradas por este chef escalabitano, a par com a cura de peixes, que tem vindo a desenvolver com o rigor de um mestre. André Lança Cordeiro encantou com os falsos pezinhos de porco. Da riqueza da cozinha do seu Essencial, mostrou o saber-fazer no que à técnica da cozinha francesa diz respeito, ora com produtos da terra, como a batata Ratte, de Raul Reis, ora com a nobreza do foie gras.

Inspirado no presunto com melão, que, em tempos, fez furor nas mesas de festa do país, Wilson Pires preparou a pre-sobremesa, um cocktail com vermute e presunto. Márcio Baltasar fez das natas e do tomate a sobremesa da noite, com a junção de outros sabores, que suplantam a criatividade; e da infusão da horta um patê de fruit.

A equipa do segundo jantar do SEMEAR
Peddy papper gastronómico: o terceiro dia do SEMEAR
Beringela grelhada, com dengaku de miso e crocante de centeio, prato dos chefs João Alves, Joana Guimarães e André Toscano

Descontraído e saboroso, o almoço de domingo traduziu-se numa espécie de peddy paper pela horta, por onde estavam espalhadas as estações com os cocktails, chefs, produtores, mentores de projectos harmonizados com vinho Vale da Capucha. O desafio começou na estufa do Areias do Seixo, espaço reservado habitualmente às refeições às famílias com crianças hospedadas no Areias do Seixo Villas. 

As boas-vindas estiveram nas mãos de Wilson Pires e Fábio Ramos. Ambos prepararam dois cocktails refrescantes: o gin tónico do SEMEAR, um infusionado feito a partir de ervas aromáticas da horta, como manjericão-limão, erva-príncipe, entre outros, com maior destaque para o gerânio; e uma versão do dark’n’stormy, ou seja, composto por dois tipos de rum da Madeira (um envelhecido por três anos e outro envelhecido por quatro anos) e ginger beer – gengibre fermentado com tomilho-limão.

No exterior da estufa, o deck serviu de palco ao chef João Alves, fundador do projecto Kin Ferments, e aos chefs Joana Guimarães e André Toscano, mentores da padaria Terço do Meio, na Ericeira. Este trio uniu a beringela ao crocante de centeio, sem descurar dos sabores da cozinha asiática, com os fermentados de João Alves. Somou-se a música eclética e o serviço de Daniel Silva, no serviço de vinhos, que acompanharam cada estação.

O romântico Abrigo do Lago serviu de cenário para duas chefs: Nikita Polido, da Casa Celmar, situada na Aldeia do Meco, e Joana Duarte, bióloga marinha, chef e fundadora da Rota das Algas. Mas antes, Miguel Neto, ceramista de corpo e alma, falou sobre as suas peças em grés. Nos pratos da sua autoria, Nikita Polido apresentou um uma receita feita a partir de vegetais, ora grelhados em carvão na hora, ora em pickles, numa simbiose de sabores intensificados pela conserva de vegetais em vinagre. Joana Duarte optou por inspirar-se “na nossa costa”, com destaque para as algas e o peixe-porco, dois produtos conjugados na perfeição. 

A horta foi o cenário escolhido para os chefs Alana Mostachio, da padaria Lully 1661, em Marvila, Lisboa, e o anfitrião António Pega brilharem. A primeira submeteu a cavala numa salmoura japonesa e juntou produtos biológicos da Biofrade, para refrescar o prato. António Pega confeccionou cabrito serpentino proveniente da Herdade de São Luís, em Montemor-o-Novo, e preparado no Talho das Manas, am A-dos-Cunhados, no concelho de Torres Vedras, cuja “receita foi inspirada na da minha avó Irene”, afirmou o chef do restaurante do Areias do Seixo.

De volta à casa de partida, Márcio Baltasar substituiu o típico arroz doce pelo trigo Barbela, previamente cozinhado como se de arroz de forno se tratasse, e confeccionado com açúcar. João Alves é novamente apoiado pela dupla Joana Guimarães e André Toscano, estando, este último, a preparar as rabanadas na cozinha, enquanto os dois primeiros compõem o prato de sobremesa, com gelado de amazake (vinho feito a partir de arroz fermentado, utilizado na cozinha japonesa) e caramelo feito a partir de koji (fungo usado nas culinárias chinesa e japonesa) de cevada.

Em suma, esta “troca de experiências e ideias durante um fim-de-semana de forma imersiva reforçou a partilha e o desenvolvimento de processos criativos, que certamente alargarão os conhecimentos e as aprendizagens dos chefs e contribuirão para o seu crescimento e para a melhoria da oferta gastronómica nacional”, concluiu Gonçalo Alves, que deixou transparecer interesse em criar “uma segunda edição do SEMEAR itinerante pela região”. Rui Madeira revelou que, “no rescaldo do evento, toda a equipa das Areias do Seixo continua a comentar: ‘evento fantástico, queremos mais. O SEMEAR foi um sucesso!’ Sei que vamos fazer mais coisas e sinto também que acabamos de ‘semear’. Acredito que num futuro próximo voltaremos a estar todos juntos, para reflectir e darmos todos um pouco de ‘tempo’, para conseguirmos brevemente fazer uma bela ‘colheita’.

Leia aqui a segunda parte do Semear (produtores).


Areias do Seixo
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: Marta Fonseca e Gonçalo Alves, co-fundadores do Areias do Seixo

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