Pedro Pena Bastos: “a cozinha é um mundo de oportunidades e há espaço para nos expressarmos”

Celebra 17 anos de um percurso singular pela alta gastronomia. No currículo guarda a Escola Superior de Hotelaria do Estoril e soma restaurantes de dentro e fora de portas. O Esporão, Alentejo, marca o virar da página no desempenho de chef de cozinha, e o Cura, no Ritz Four Seasons Hotel Lisbon, é “o apanhado de tudo aquilo que era a minha cozinha”. Leia a entrevista a Pedro Pena Bastos.
Intimista e discreto, o Cura abre portas em 2020 no Ritz Four Seasons Hotel Lisbon

O Bairro de Francos, na Boavista, cidade do Porto, está no coração, sendo o próprio Boavista o clube de eleição. Começa no Cafeína, no Porto, e, aos 17 anos, troca a Invicta por Cascais, para frequentar a Escola Superior de Hotelaria do Estoril. Objectivo: aprimorar o conhecimento na área da cozinha. Ao Belcanto e ao Feitoria, em Lisboa, seguiram-se as experiências fora de portas, mais concretamente em Copenhaga e em Londres. No regresso, é o Alentejo que se traduz na viragem da sua cozinha em território nacional, onde soma saber-fazer e fomenta a relação com os produtores, já que a matéria-prima de qualidade é compromisso a respeitar. De volta a Lisboa, cozinha no Ceia, e, em 2020, abre o Cura. Refere-se a este restaurante, instalado no Ritz Four Seasons, Hotel Lisbon (aberto apenas aos jantares), na primeira pessoa do plural, como equipa, onde as mulheres marcam presença de modo equitativo em relação aos homens, graças à meritocracia, ao esforço e à capacidade de espírito crítico entre todos. Leia a entrevista ao chef Pedro Pena Bastos.

O que pesou na decisão do Pedro enveredar pela cozinha?
O acto de conseguir dar prazer às pessoas. Pensei nisso aos 16 anos e, aos 17, aventurei-me num curso de cozinha no Cafeína [no Porto], com o Camilo [Jaña]. Passados os módulos seguintes, já ele me tinha devolvido o dinheiro e estava eu a ajudá-lo a dar a aula. Foi muito por interesse, por paixão! 

Seguiu-se a Escola Superior de Hotelaria do Estoril.
Acho que foi uma desculpa, para sair da casa dos meus pais. Vim para Lisboa há 17 anos, ou seja, este ano faço 17 anos que estou em Lisboa, metade da minha vida já está a ser feita em Lisboa. 

A formação foi complementada por estágios. Quantos cabem no currículo do chef?
Estive no Belcanto, no Feitoria [ambos em Lisboa], no Geranium, em Copenhaga [Dinamarca], no The Ledbury, em Londres [Reino Unido]. Este [último] foi onde estive mais tempo e talvez o que me marcou mais. Pontualmente, estive em outros restaurantes enquanto chef. 

Quão importante é a formação no percurso de um cozinheiro?
O tempo, infelizmente, não dá para tudo. A parte da formação é muito importante. Onde se aprende muito é nos eventos gastronómicos, na troca de conhecimento entre chefs, convidando chefs para cá ou cozinhando fora, com outros chefs. Gosto de estudar todos os dias, de saber o porquê das coisas. Há uma justificação científica atrás desde o acto de cozinhar, desde a transformação fisico-química dos alimentos até à parte enzimática, o impacto da comida no nosso organismo, o facto de termos prazer quando comemos. Para além de precisarmos, gostamos de comer. Foi assim que a cozinha passou a ser um negócio, não só por necessidade, mas também por prazer. Este prazer esteve sempre ligado ao que faço, ou seja, em dar um bocadinho aos outros aquilo que dificilmente consigo exprimir por palavras. Cozinhar era, aos 17 anos, a minha forma de me exprimir. Tinha tudo na cozinha. Estava numa altura de explosão, cheio de ideias, mas nunca perdi o foco daquilo que queria.

Nestes 17 anos, como foi conduzida a relação com os produtores? 
Vejo o processo de uma forma muito simples: temos de ser nós a dar o nosso lado humano quando falamos com um fornecedor, um produtor. Estamos a falar de um bom parceiro, de uma boa parceria, do lado humano, de ser uma relação mais natural. O crédito da idade não ajudava muito, mas temos de bater o pé. 

O que mudou nessa interacção com os produtores?
Aos 23 anos estava com um projecto no Grémio Literário [em Lisboa]. Nesse mesmo ano, fui para o Esporão. Estava numa posição delicada, era muito novo. Estava a começar a chefiar um projecto, que, no fundo, representava a renovação total do restaurante. Hoje em dia, sinto que teve um enorme impacto na minha vida e na restauração daquela zona, porque conseguimos fazer um óptimo trabalho – a equipa toda e eu. Tentamos angariar fornecedores, negociar margens, volume, número de entregas por semana. Em Lisboa, em cidades grandes, é mais fácil, porque há toda uma panóplia de fornecedores, de repente, estava no Alentejo onde não existia nada… Trabalhavamos com uma empresa de congelados e uma empresa de frescos, que ia aos mercados locais. Os mercados locais em Portugal sabemos bem como funcionam. Ou há a sorte de estarmos numa zona onde há muitos produtores biológicos e com cuidado, ou não passam de um aglomerado de retalhistas que querem fazer dinheiro com os produtos que vendem. Ir aos grandes espaços das marcas de retalho é a mesma coisa que ir a esses mercados municipais, salvo raras excepções. Esse, foi o ponto de viragem da minha carreira, a relação com os fornecedores. Aprendi muito quando estive no Esporão.  

“Em Portugal, temos fornecedores de tudo! Portugal e Espanha, porque também trabalhamos com produto espanhol. Gosto de pensar numa ligação ibérica”

Como actuou, para ultrapassar estes obstáculos?
A primeira coisa que tentei fazer foi estabelecer o leque de fornecedores, com os quais podia trabalhar desde Lisboa. Consegui levar alguns, outros não aceitaram. Houve fornecedores que queriam transportar o produto, porque lhes interessava estarem associados ao restaurante, ao trabalho que fazíamos, por causa da forma como trabalhávamos os produtos. Até produzem para nós, se for preciso. Depois, compramos o que eles produzem, porque o fácil é ir ao retalho; o difícil é trabalhar com 200 fornecedores, que transformam o negócio em algo que nós podemos sonhar. Em Portugal, temos fornecedores de tudo! Portugal e Espanha, porque também trabalhamos com produto espanhol. Gosto de pensar numa ligação ibérica. Eles também falam muito do nosso produto, trabalham muito com os nossos produtos. Ainda assim, o produto produzido em Portugal chega para elevar os restaurantes a níveis soberbos. Estamos num país riquíssimo em termos de diversidade de produtos, estamos a mudar muito a forma de trabalhá-los, de embalá-los, de apresentá-los. Mostrar valor pela real qualidade do produto, não só porque é diferente, não só porque somos os únicos a fazê-lo. O produto tem mesmo de ser bom e estar dentro da época. Neste tipo de restauração, se oferecermos um tomate, o tomate tem de ser da época, caso contrário não é igual, não para um restaurante deste nível. Tem a ver com expectativa vs. preço vs. experiência. Senão, todos os restaurantes eram iguais, excepto a parte criativa.

O chef Pedro Pena Bastos conta com uma equipa coesa e com espírito crítico

O esforço compensa.
Realmente, o esforço compensa, pelo trabalho de equipa, pelas pessoas que acreditam na minha mensagem, na minha metodologia, porque a cozinha é mais do que o acto de cozinhar. Ao final do dia, vemos os clientes super satisfeitos. Gostávamos de poder dar mais um salto. Temos uma equipa extraordinária. Estamos super orgulhosos e motivados, porque podemos ter acesso a produtos espectaculares. O Cura tem uma equipa formada por pessoas com espírito crítico, com opiniões para dar. Cada vez mais, curiosamente, composta por mulheres, o que aconteceu naturalmente. Queremos que as pessoas cresçam connosco. É um negócio muito bem montado, mas feito por pessoas. Portanto, tem de haver compromisso. 

“Espero que haja cada vez mais chefs de cozinha, chefs mulheres, porque nós precisamos, é importante que haja esse equilíbrio, é importante por uma questão de respeito.”

É uma questão de mérito?
Não acredito num mundo só de mulheres ou num mundo só de homens. Os projectos vivem de fases e nós estamos numa fase em que as mulheres abundam e o projecto prospera como nunca prosperou. Temos uma equipa espectacular. As pessoas sentem-se bem a trabalhar, querem trabalhar connosco. Digo isto, para abrir os olhos das mulheres em Portugal e no mundo, em como a cozinha é um mundo de oportunidades e há espaço para nos expressarmos. Não vou contratar uma mulher só porque sim. Há um espírito de sacrifício, há um espírito de vontade? Há, sem dúvida! Espero que haja cada vez mais chefs de cozinha, chefs mulheres, porque nós precisamos, é importante que haja esse equilíbrio, é importante por uma questão de respeito. A era de haver só chefs de cozinha homens já passou. É mais difícil? É! É verdade que as mulheres passam por períodos da vida que os homens não passam. É quase injusto. Ou não. É natural. 

Porco alentejano com emêndoas e ameixa, nabiças e arroz de cogumelos cantarelos

O trabalho do chef no Cura é o somatório destes 17 anos de cozinheiro?
Estou a fazer aqui quase um apanhado de tudo aquilo que era a minha cozinha, tendo em conta o espaço onde estamos inseridos – a cidade –, os produtos também são diferentes; trazer um lado muito grande de portugalidade, sem pôr de parte a parte vanguardista da cozinha. Não queremos ser extremistas, mas não somos tradicionais portugueses. Inspiramo-nos nos nossos costumes e tradições e cultura gastronómica portuguesa, com grande foco no receituário antigo e popular, sem copiar receita na íntegra. Tentamos que quase todos os pratos tenham uma alma portuguesa.

Quando fala em tradição e portugalidade, significa que o Cura representa Portugal de lés-a-lés?
Não sou fundamentalista. Ocasionalmente podemos trabalhar mais produtos das ilhas e, noutros meses do ano, vamos buscar pratos ou inspirações nortenhas, sem ter essa excentricidade de chegar a todos os cantos do país, para não perder a parte da sazonalidade, até porque os produtos que se usam no interior são diferentes da cozinha do litoral. Temos um estufado de sames com cozido de grão e até um arroz de nabiças com porco alentejano. Num prato de carne podemos ter um bocadinho do Norte e do Sul em simultâneo. Gosto de sentir, no final, que os clientes saem daqui com a sensação de que provaram comida portuguesa.

O que procura obter quando desenha um prato?
O Cura é um espaço de experiências. Este tipo de restaurantes de alta cozinha tentam transmitir uma imagem e um conceito gastronómico diferentes, que representa a sua filosofia e a filosofia do chef de cozinha que está por trás do projeto, mas temos em consideração a quantidade de vegetais que temos no menu, a quantidade de proteína que temos no menu. Tentamos ter um ou dois pratos de carne no menu inteiro. Trabalhamos muito com o peixe e o marisco da nossa costa, também porque fazem parte da nossa origem enquanto portugueses, mas trabalhamos muitos vegetais. Sempre que fazemos um prato, tentamos que seja equilibrado nutricionalmente. Afinal de contas, tentamos que os nossos clientes não saiam daqui enfartados. Tentamos optimizar o nível de gordura de cada prato, mas há pratos mais gulosos, mas a seguir é servido um prato mais vegetal.

Em que medida se chega à estética sem cair no erro da cópia?
Não janto fora tantas vezes quanto gostaria e não vejo interesse em copiar o prato de alguém. Inspiração, sim, porque não! Mas é importante que consigamos dar o nosso cunho. Temos um prato de lula, por exemplo, o único prato de assinatura do restaurante. Nunca tinha trabalhado com pratos de assinatura, não acredito nisso. A meu ver, desfigura o conceito gastronómico de um restaurante. Chefs de renome já deixaram de ter pratos de assinatura, porque começaram a ser valorizados, cada vez mais, pela cozinha, ao invés daquele prato. Antigamente valorizava-se muito isso. Ainda assim, temos a lula com avelã, caviar, bergamota e manteiga torrada de algas, porque as pessoas pedem ‘mantenham só esse’. É um prato intemporal. Há lulas todo o ano na nossa costa e o óleo de bergamota fazemos uma vez por ano. Essa inspiração desse prato vem de uma técnica que vi num prato de polvo de um chef italiano. Podemos inspirar-nos, mas devemos ir beber à nossa essência.


Cura
© Fotografia: João Pedro Rato

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